Sobre o Logos Analogante & uma apologia ao platonismo — Mário Ferreira dos Santos

João Guilherme Pianezzola
10 min readJun 9, 2022

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No terceiro volume de sua “Filosofia Concreta” e após a tese 257, ao comentar os princípios até ali expostos, Mário se estende um pouco e escreve, talvez intencionalmente, um pequeno opúsculo à moda de resumo dos conceitos basilares de sua filosofia. Começa com uma apologia à dialética platônica frente à lógica formal aristotélica culminando na explicação do conceito de “logos analogante”, central à filosofia concreta. Essa explicação passeia por outros conceitos, como o arithmós pitagórico, à participação, o devir de Heráclito e o Ser Supremo como Logos Analogante universal e final. Boa leitura!

E mbora o formalismo lógico de Aristóteles tenha imenso valor para a Filosofia, não se pode nem se deve deixar de considerar as grandes contribuições dialéticas do platonismo, que nos oferecem meios hábeis para um melhor raciocínio na Filosofia Concreta, sem prescindir das contribuições do estagirita.

Na teoria do silogismo aristotélico, vemos que entre duas premissas particulares ou duas premissas negativas, nada se pode concluir. Já o mesmo não se dá na dialética socrático-platônica, desde que entre essas premissas particulares se possa estabelecer uma proporção, isto é, quando sejam elas analogadas. Estabelecida a proporção, é possível alcançar a um Logos analogante, como um resultado final da operação.

A analogia, para Sócrates, é algo segundo o Logos (aná e logos). O termo Logos, apesar das muitas acepções que lhe emprestam os gregos, significa, em suma, relação, lei, princípio. O termo lex, legis dos latinos tem a mesma origem no radical lec, loc, log, colher, captar, segurar, dirigir, dominar, pois as leis, as relações, os princípios, regem, dominam, orientam o que deles decorre ou o que a eles se subordina. A ideia de lei implica a relação, pois ela é o que conexiona e correlaciona os fatos dentro de uma normal obrigatória. Para que surja um ente impõe-se a obediência de uma normal, de uma relação que deve ser obedecida, que é a lei de proporcionalidade intrínseca, a forma desse ente; e no conceito de proporcionalidade está a analogia, porque essa lei, que é, segundo o Logos, o Princípio, é a analogante dos analogados; é ela, em suma, um logos analogante (lei).

Assim a triangularidade é o logos dos triângulos. Os triângulos, semelhantes entre si, se analogam no logos analogante da triangularidade (a forma da triangularidade, a lei que os rege). Tais leis (logoi) são procuradas pelas ciências naturais, que tendem a alcançar as constantes de relacionamento que regem os entes, e são imprescindíveis para que eles sejam o que são.

O Logos, como princípio, é o poder de relacionar, de colocar em face de outro para que algo surja, para que algo suceda.

E essa a razão por que não procedemos dedutivamente a more geometrico neste livro, e sim, empregamos a nossa dialética, que é também indutiva, pois induzimos os logoi analogantes à proporção que se estabelecem as proposições. Demonstramos, usando a análise das implicações, quando elas se tornam necessárias, desde que bem fundadas nas estruturas analogantes, como procedemos indutivamente, pois partindo de que “alguma coisa há”, alcançamos que “alguma coisa existe”, sem que o logos da existência estivesse contido no do haver, como não está.

Dessa maneira, usando como oposição a impossibilidade do nada absoluto, torna-se apodítica a afirmação do ser, e de tudo quanto é, sem apelos a formalismos perigosos, como poderia proceder quem apenas permanecesse dentro dos cânones aristotélicos.

Existir é ser em si mesmo, subsistir, é ser “um”, é ser uma hipótese, é ser um “suppositum”. “Alguma coisa há” aponta para tal; pois, para haver algo, impõe-se alguma coisa que é que existe, que é por si mesma, pois, do contrário, seria por outro e esse outro seria o nada absoluto, o que é absurdo, ou seria por si mesmo, o que lhe daria a plenitude da existência, o ser em si mesmo, a suficiente subsistência.

Estabelecido o ser, toda modalidade de ser é analógica sempre, porque a perfeição de ser não se pode abstrair dos seus diferentes modos, pois todos são. A impossibilidade do nada absoluto, afirma a plenitude do ser, pois não há meio termo entre nada e ser. Consequentemente, a existência do ser é apoditicamente demonstrada.

O ser em devir é não-ser em certo sentido, mas relativo, com alteridade, o que é inteligível, como já o mostrava Platão no Sofista.

“Alguma coisa há” porque alguma coisa existe. E a existência do ser é a razão suficiente de “alguma coisa”, mas induzida na busca de um logos analogante, e não deduzida, como já o mostramos. E a razão da existência do ser está em si mesmo, quia subsistit, porque subsiste, porque o inverso do nada absoluto é ser, e este, por não haver meio termo entre ambos, é ser em plenitude, e, portanto, existir. Assim, por qualquer caminho que sigamos, alcançaremos sempre ao ser primeiro e subsistente em si mesmo, a infinita ipseidade, imutável em si mesmo, que não necessita de uma razão para ser, pois não depende de outro, e a si mesmo se afirma. E, nele, ser e existência se identificam.

A operação é distinta do operador, mas a ele conexionada. A operação é do operador. E o ser de, o ser dependente, deve ser distinto do ser que é, do ser de que é. Há, aqui, a subordinação do posterior ao anterior. O Ser Supremo, como operador, não depende; é o mesmo ser ao operar, mas a operação ad extra é distinta, é outra, por que o operar é diádico em seus efeitos, como demonstramos.

Na analogia, há a síntese da semelhança e da diferença; mas a semelhança implica igualdade parcial, não só no campo quantitativo, como qualitativo, e também no ontológico, o que não percebeu Aristóteles, mas o perceberam Sócrates e Platão. A analogia é uma síntese da semelhança e da diferença, mas o que prepondera aqui é a semelhança, que, levada às últimas consequências, alcança ao logos analogante, que identifica os fatos quanto às suas relações, porque estabelece a mesma lei que eles “copiam” sem ser ela, que eles “imitam” sem ser ela, como todos os corpos que caem, sejam quais forem, analogam-se na lei da queda dos corpos e imitam essa relação, sem serem ela, pois o corpo que cai não é o supósito da queda dos corpos.

Esses logoi são estruturas ontológicas, porque são relações, e não têm subjetividade, não têm um sujeito que os represente. Não se pode dizer: “Aqui vai a queda dos corpos”. Não encontramos a subjetividade, a substância singular da atração, mas sim a atração que se dá aqui e ali e, por se dar aqui e ali, permite que se dê em toda a parte onde essa lei da atração, esse logos, possa reinar, reger.

Assim a animalidade não tem uma subjetividade, um supósito que a represente. “Ali vai a animalidade”… mas, sim, ali vai um ser que tem animalidade, um ser no qual há o logos da animalidade, um ser que imita a lei de proporcionalidade intrínseca daquela, mas que não é ela subjetivamente, mas apenas formalmente ela, pois, no logos da sua individualidade, a animalidade é componente do seu arithmós. Ora, o logos é uma relação, é uma lei, é portanto um arithmós em sentido pitagórico, pois este implica fundamentalmente a díada e, sobretudo, a analogia, pois os opostos relacionados são analogados para que surja entre e dentre eles um ser, com o seu logos próprio. Desta forma, para Sócrates, o katholon, o universal, que para Aristóteles é uma substância, é para aquele uma relação, um verdadeiro logos, que determina o aspecto da semelhança, um logos analogante.

E como os diversos logoi, que ele buscava encontrar em suas constantes perguntas, estão analogados ao Logos Supremo, que a todos analoga, esse logos é a lei relacional das coisas mutuamente opostas do cosmos, é, em suma, a lei permanente da evolução universal de Heráclito, à qual subordinava a fluência e a oposição, a lei universal da permanência no devir, da imutabilidade do devir, que sempre devém, que portanto realizava a mutabilidade da lei da evolução universal. (Dessa forma, vê-se como a Filosofia Concreta sabe e pode reunir as positividades dispersas, tantas vezes contrárias de tanto filósofo, mas todas participantes de alguma verdade da concepção concreta, que é a nossa, que as reúne, não por compromissos, mas por meio dessas positividades, que são conciliáveis, e que correspondam às positividades que constituem o arcabouço da Filosofia Concreta).

Entre duas premissas particulares analogadas, Sócrates induz o logos analogante (pois a dialética socrático-platônica é predominantemente indutiva, ao invés da aristotélica).Vejamos o exemplo clássico:

O leão é o rei do deserto. Dom Manuel é o rei de Portugal.

Dessas duas premissas particulares nada se pode deduzir dos cânones aristotélicos; mas dentro dos cânones socráticos é possível induzir, pela busca do logos analogante. (Tinha razão Aristóteles ao dizer, na Metafísica, que Sócrates era o criador das razões indutivas, dos logoi indutivos). Essas duas premissas podem ser reduzidas a uma proporção (analogia). Como o rei domina o seu reino, o leão domina o deserto. Mas há semelhança entre ambos, podemos ainda salientar as diferenças, pois o reinar do rei é diferente do reinar do leão, mas afinal, através das induções socráticas, alcançamos a um logos analogante, que é este: o relativamente mais poderoso domina sempre no campo respectivo de suas atividades. Ora, o leão é o relativamente mais poderoso no deserto, dominando neste, no campo respectivo de suas atividades, como o rei domina no reino.

Ora, esse logos analogante pode, afinal, ser reduzido genericamente ao logos analogante de que o “agente atua proporcionadamente à sua natureza e proporcionadamente ao campo de sua atividade”. Essa proporcionalidade, por sua vez, reduz-se genericamente ao logos de que “o agente atua e o paciente sofre proporcionadamente às suas naturezas”. Por sua vez tal se dá pela lei do Ser, já induzidas pelos princípios por nós examinados, pois se o agente atuasse além da sua natureza, o suprimento viria dele ou de outro, ou do nada. Se dele, então já o conteria, já era poderoso e, portanto, sua ação seria proporcionada à sua natureza; se de outro, sua ação seria proporcionada ainda à sua natureza e ao suprimento dado por outro, que seria, então, o agente. Do nada, é absurdo. Portanto, é consentâneo e congruente que o agente atue proporcionadamente à sua natureza, ou seja: a atuação é analogada à sua natureza, a ele mesmo.

É o logos da sua existência. Dá-se o mesmo com o paciente. Deste modo, o Logos analogante final é a Lei do Ser, a suprema Lei da identidade, de que o Ser é e o Ser Supremo é ele mesmo (ipseidade).

Não se deve acusar o juízo o Ser é de tautológico, pois o sujeito reflete completamente no verbo, pois fora do ser nada pode existir no ente, como vimos. Quando se diz o andante anda não se expõe toda a atualidade do sujeito, como se vê no juízo o Ser é, pois o andante, quando anda, não apenas anda. O Ser é é completa e infinitamente ser. Dizer-se o não-ente é é uma contradição in adjecto. Mas quando se diz que o não-ente não é, estamos numa rigorosa correspondência com o Ser é, pois sendo o ente ser, o não-ente é não-ser.

A lei do Ser, o Logos do Ser, é o seu próprio princípio, é ele mesmo, pois Logos é também princípio. Portanto, compreende-se que: “No Princípio era o Logos e o Logos era o Princípio”. E é o Logos princípio que realiza a realização, por isso o Logos (verbum) se fez carne, temporalizou-se, porque temporalizou a relação, sem que o Logos, como princípio, deixasse de ser o princípio, Lei Suprema de todas as leis, que é: fora do Ser nada há, não há nada.

A esse grande Logos analogante, Supremo, todas as coisas se assemelham, todas são perfeitas, de certo modo, à sua semelhança, porque todas respeitam essa lei suprema, porque fora dela nada há.

A analogia não está apenas baseada na semelhança, mas também na subordinação (sub-ordinis, na ordem dependente de outro, do Logos analogante), pois as relações particulares conexionam-se com ele por via de subordinação (de sub e alter, outro, por dependência de outro). É do logos da lei da analogia a subalternação dos analogados ao logos analogante, e este ao Logos Supremo, o Logos transcendental.

O Ser Supremo não é relação porque é único e absolutamente simples; mas tudo o mais é produto de relações, e as formas noético-abstratas são significações delas (os conceitos, em suma).

O Logos, como princípio, domina o posterior, como o provamos. É uma lei da própria lei. É um logos do logos. O posterior é dependente do anterior. E nessa dependência há subordinação. O Princípio, que é a lei, é o anterior, e a ele se subordinam os posteriores.

Consequentemente, todos os fatos estão subordinados a leis, a logoi, que, por sua vez, estão subordinados ao Logos analogante supremo, a lei suprema universal.

O Logos, como princípio, relaciona. É a sua operação. Como operador, opera uma operação. A operação ad extra implica uma determinação e, no determinado, uma ausência de perfeição, pois o que é isto não é aquilo.

Faz parte da sua realidade a negação. O não-ente, o nada relativo, é assim real, e permite uma composição real, um relacionamento real com o ente.

A operação é relação, é por um em face do outro. A operação do Logos é a criação do Outro, porque, do contrário seria apenas ele mesmo, e, neste caso, seria apenas a sua glória. Criar o Outro é do poder da Grande Ipseidade do Ser Supremo. Mas o Outro é privado de perfeição, é imperfeito. Sua perfeição não é infinita, porque esta pertence ao Ser Supremo.

Consequentemente, sua perfeição finita é privada de… O Logos, ao criar, no seu operar, cria a relação que surge da oposição decorrente do estabelecimento da crise. O operador, quando opera, é distinto de si mesmo. A ideia de operação exige o dois, a díada, como já vimos.

Exige os opostos. Para que haja opostos impõe-se a crise. A crise é o resultado do primeiro ato criacional. Criar é atualizar os possíveis. É preciso destacar, separar. A operação é dual, porque operar, neste caso, implica algo que é operado; o ativo e o passivo.

A oposição só se dá onde há separação. No ato de criar, estabelecem-se simultaneamente a crise, a oposição, a relação, a lei; em suma, o logos que analogará os fatos a ele análogos.

A crise não é um abismo, como já o mostramos em “Filosofia da Crise”.

A crise estabelece a distinção entre vetores opostos, que mantêm relações, mas analogadas ao Logos Analogante Supremo.

Ela é dual, e permite que um se coloque em face de outro, que se relacionem, se conexionem, permitindo, assim, o diferente, o heterogêneo, o diverso até à haecceitas (heceidade), a última determinação da forma. Foi o que vimos ao tratar do Meon.

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“Pois nele vivemos, nos movemos e existimos” — Atos 17:28.

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