Lucien Febvre — Seu pensamento, sua obra e sua revolução

João Guilherme Pianezzola
14 min readJun 17, 2021

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OPOSIÇÃO À HISTÓRIA TRADICIONAL

A metodologia de Lucien Febvre se erige intrinsecamente como oposição crítica à historiografia tradicional. É possível analisar cada aspecto inovador de seu pensamento em contraponto com sua antípoda que se encontra em alguma aresta da História até então historicista e positivista. Portanto, para contextualizar, será a seguir explicado seus aspectos substanciais.

O ponto nevrálgico da historiografia tradicional posta sob críticas lentes por Febvre é, sem dúvidas, o seu apaixonado apego à história política e à exclusividade das fontes textuais oficiais, como reflexo paradoxal de uma pretensa desapaixonada investigação da verdade por trás dos “fatos históricos”. Essa valorização exagerada da história política e a opção pelo Estado-Nação como único sujeito historiográfico pode ser interpretado como reflexo do papel de “fermento nacional” que tinha a História tradicional naquele tempo, principalmente na Alemanha no contexto de sua unificação tardia. Seus intelectuais, longe de realizarem pesquisas desinteressadas, tinham o papel explícito de colherem no passado de sua nação justificativas para a sua independência e legitimadores de sua grandeza. Isso desembocou, é claro, no apego pela política e seu desenvolvimento cronológico como revérbero autêntico da unidade histórica dos povos e pelos documentos textuais e oficiais produzidos por esse poder político como suficientes para a coleta da verdade, integralmente contida em tais textos, bastando ao historiador a tarefa — um tanto passiva — de reconstitui-la fielmente.

Febvre criticará tal abordagem, mostrando a vocação ativa do historiador na reconstituição dos fatos passados; questionará a própria noção de “fato histórico” pois, segundo ele, o passado não se nos entrega de pronto através dos documentos, mas se reconstitui mimeticamente como uma imagem pelo historiador, através do auxílio interdisciplinar de uma multiplicidade de fontes históricas anexas porém externas ao documento escrito, e passando pelo filtro da cultura e valores do historiador, bem como pelo “problema” por ele escolhido como recorte investigativo. Tal definição, por óbvio, suscitará novos questionamentos quanto à objetividade científica do método histórico, os quais Febvre preocupar-se-á ativamente em fornecer uma resposta definitiva.

DOIS MOMENTOS, QUATRO PILARES

Grosso modo, a biografia intelectual de Lucien Febvre pode ser dividida em dois capítulos ou fases, nas quais suas ideias teórico-metodológicas se desenvolvem enquanto respostas às questões presentes nos debates por ele vivenciados; tais ideias podem ser resumidas em quatro conceitos principais, que formam a base da herança intelectual nos deixada pelo cofundador da Escola dos Annales.

Marc Bloch, 1866–1944.

Primeiramente, temos o Lucien Febvre colaborador da revista Revue de Synthèse Historique, fundada por Henri Berr em 1900, que se concentra na possibilidade de levar a cabo o projeto berriano de unificação dos conhecimentos científicos que tratam das experiências humanas, sob o epíteto de síntese histórica, juntamente com a busca pela história total. Em um segundo momento, orientado pelo seu colega Marc Bloch, temos a fundação oficial em 1929 da revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, que apresenta um Febvre amadurecido, que se move preocupado na direção da história-problema e do método compreensivo como objetivo último do conhecimento histórico.

Essas quatro arestas conceituais fundamentais do panorama teórico febvriano representam novidades que giram em torno de um fundo substancialmente compreensivista e universalista, para longe do método epistemológico tradicional, incapaz de libertar-se da unilateralidade política, do progressivismo histórico e do privilégio estanque do texto escrito; o giro epistemológico protagonizado por Lucien Febvre e herdado pelos annalistes enxerga a historiografia como apreensão das rupturas em referência às continuidades, devendo ser estas foco da “compreensão” do historiador, que não deve poupar o auxílio multidisciplinar em sua empresa construtiva de um passado dinâmico, denso e existencialmente coletivo, além de múltiplo e influenciado por condicionantes indeterminados. O objeto de estudo da historiografia, portanto, deve ser a experiência humana no tempo, aproximando esta área da sociologia; a Escola dos Annales define-se, logo, como eminentemente modernista e protagonista de uma revitalização da essência do “fazer História”.

SÍNTESE HISTÓRICA

A inovação da síntese histórica representa uma primeira tentativa de fornecer respostas a respeito da nova epistemologia a ser adotada. Principiada por Henri Berr, amadurecida por Febvre, a síntese histórica impõe-se como possibilidade de uma multidisciplinaridade concreta.

Que isso quer dizer? Que perceberam os dois, mestre e aluno, que a progressiva separação das diversas ciências, especialmente as ciências humanas, propiciava um entendimento lacunar do real. A História, por exemplo, que obteve seu legado de disciplina independente no século XIX ao lutar contra os avanços indevidos da Filosofia no seu objeto de estudo — não sem certa justiça — , ficou de certa forma isolada, e o isolamento tolhe a capacidade investigativa. Isto é, a estrutura da realidade não é lacunar, separada em caixas ou gavetas; numa delas escrita “isto aqui pertence à Biologia”, noutra “isto à Sociologia”, etc.

Baseados, portanto, na História entendida em sua concretude como a apreensão da continuidade de um “todo”, apesar de suas rupturas, e como resultado qualitativo da relação entre diversas experiências humanas no tempo, e esta experiência como objeto da historiografia, Febvre e Barr passam a compreender que as diversas disciplinas humanas devem auxiliar a História na melhor compreensão deste objeto, e que a interdependência entre os ramos do conhecimento faz surgir uma visão conjuntural da vida coletiva, isto é, com a ajuda da Sociologia, Psicologia e Geografia, por exemplo, o tempo histórico torna-se denso, lento, profundo e qualitativamente diversificado; a estrutura complexa da realidade passa a ser mais patente, e os diversos condicionantes de determinada ação ou ruptura — expressões da vida comum, hábitos e tradições — podem ser melhor compreendidos, propiciando uma melhor síntese daquela continuidade de que se compõe a hermenêutica histórica.

Podemos citar alguns exemplos de tal interdisciplinaridade para melhor visualizarmos o que expomos acima. Dois de seus trabalhos inaugurais, enquanto Lucien Febvre ainda movia-se em torno do projeto da síntese, parecem ter sido influenciados pela Geografia de Vidal de La Blanche. São eles Philippe II et la Franche-Comté (1911) e A Terra e a evolução humana (1922). A geografía humana de La Blanche auxiliou Febvre a formular a sua ideia de tempo histórico, através do seu entendimento original das relações entre o homem e a natureza, isto é, a relação concreta e efetiva existente entre as sociedades, apreendidas em sua evolução, e o meio físico e biológico no qual se inscrevem. Assim, funda-se uma relação real entre tempo e espaço (tempo-espaço), tornando o tempo histórico, como já mencionamos acima, denso, profundo e menos frívolo, rápido ou efervescente. Em suma, mais significativo epistemologicamente.

Por fim, outra influência deixada na obra de Febvre é a da Psicologia. De fato, por meio da união da Psicologia com a História, Febvre empreendeu um verdadeiro estudo da história das mentalidades, analisando as sociedades pelas suas estruturas mentais coletivas, afastando-se dessa forma da historiografia tradicional dos metódicos, que optava por reduzir o foco aos grandes indivíduos políticos. A psicologia implícita dos metódicos fazia uma cisão entre a mentalidade coletiva e a individual, pois considerava os grandes personagens como impulsionadores da história pelo pleno exercício da livre vontade e da fibra interior; contudo, ao populacho alheio à política, restava a aplicação de uma psicologia de manada que legava-lhes um papel de subserviência à vontade soberana dos indivíduos detentores do poder político ou do Zeitgeist extra-humano que dirige o tempo histórico. Febvre unifica estes dois grupos sob o mesmo enfoque analítico, aquele da psicologia coletiva concreta aplicada tanto ao indivíduo quanto à sociedade, tido como resultado de vários afluentes e condicionantes alheios ao seu arbítrio, por mais que este tenha algum papel na evolução social.

HISTÓRIA TOTAL

Tudo isso flui naturalmente para a história total, a rejeição máxima da exclusividade do texto escrito e a aceitação da multidisciplinaridade como via realista para a concreção do fazer histórico. Afinal, apenas com a multidisciplinaridade se pode apreender em um processo de síntese a multiplicidade de experiências vividas no tempo histórico, considerado em si como também múltiplo e variado. Abandona-se assim as noções de progresso, linearidade, uniformidade, abraçando os conceitos de pluridirecionalidade, multiplicidade, descontinuidade, etc. Encara-se de forma realista o passado como um complexo de condicionantes que influem no arbítrio humano ao longo do tempo. Posiciona-se humildemente diante de um passado impossível de ser coletado integralmente através de documentos oficiais num processo sintético artificial e “isento de juízos de valor”.

O projeto da histoire totale implica na crítica do fato histórico como unidade possível e constitutiva da história, substituindo-o pelo conceito de história-problema, com o qual irá se preocupar Febvre durante o seu tempo nos Annales. O novo conceito ereto como pilar opositivo à tradicional noção de tempo reconstruído, pretensiosamente de forma parcial e objetiva, é, portanto, inserido no conceito mais amplo da história total, como vimos, e esta, por sua vez, segue naturalmente da ideia febvre-berriana de síntese histórica. Não é errada, portanto, a assertiva de que o pleroma revolucionário da historiografia de Lucien Febvre é o próprio ímpeto compreensivista e universalista que define um processo investigativo histórico mais relativista capaz de abraçar todas as arestas do agir humano — refletido pelas suas disciplinas de estudo — para a concreção de uma História compreendida por todas as suas causas implícitas e explícitas; é a negação da clássica confusão do todo pela parte cometida pelos metódicos, limitados a um só documento e a um só aspecto da experiência temporal humana.

HISTÓRIA-PROBLEMA

Como vimos, em 1929 é fundada a Escola dos Annales e, sob a direção de Marc Bloch já carregando a bagagem intelectual e conceitual que vimos acima, Febvre direcionar-se-á para a resolução da problemática da objetividade científica de seu novo método. Para tal, cunhará o conceito de história-problema, de que já falamos um pouco anteriormente, que opõe-se à historiografia clássica.

Para a história metódica, que se arvorava na circunscrição de seu objeto de estudo sob a pretensão de objetividade e rigidez científica, pareceria o ápice do laxismo a admissão pela Escola dos Annales de que a total imparcialidade e isenção de valores é uma empreitada impossível. Contudo, para Febvre, não passava da mais pura verdade, e somente esta admissão para mais rigorosos critérios de cientificidade, porque trocaria falsas pretensões por verdadeiras, ao assumir critérios de objetividade próprios, não aqueles pertencentes às ciências naturais, alheias ao fazer historiográfico.

Isto é, Febvre, juntamente com outros escritores contemporâneos independentes de alguma escola específica, como Eric Voegelin, apontam as falhas do método positivista em tornar a História submissa às ciências naturais pela adoção sem reservas de seus critérios epistemológicos matematizantes, levando à igual matematização das ciências humanas. Voegelin, por exemplo, aponta para a criação positivista da quimérica “física social”, hipocritamente objetiva e ausente de juízos de valor sobre o passado. A resposta do porquê da hipocrisia alegada encontra-se efusivamente na obra de Lucien Febvre: é patente que uma historiografia que privilegia a história política acima de qualquer outra, e instrumentaliza a igualmente artificial opção única pelo texto escrito em prol de uma narrativa progressista que exclui elementos pulsantes da vida das nações, quais sejam, a religiosidade, a mentalidade coletiva e demais valores subjetivos, porém constatáveis, só pode ser uma historiografia que cai precisamente naquilo que condena e perde sua alegada objetividade.

Lucien Febvre admite, contudo, que não há resgate integral de um passado quantificável capaz de ser ressuscitado e montado fielmente como um castelo de pecinhas encaixáveis. Febvre corajosamente admite a obviedade semi-blasfema que até então permanecia impronunciável: o “fazer História” é uma operação eminentemente intelectual e ativa; é uma construção levada à cabo pelo historiador, que age como um personagem ativo, que seleciona um recorte do tempo-espaço para o estudo, e para a qual colheita de dados evidenciáveis é filtrada pelas crenças e valores pessoais do historiador. A imparcialidade absoluta é impossível, e tal admissão é o eixo central da concepção de Febvre sobre o conhecimento científico e histórico.

Deve o historiador, portanto, assumir uma postura crítica diante do passado, arvorando-se em um problema, uma inquietação ou uma tensão que é posta, apresenta-se ou existe concretamente no presente e desde o presente. Através dessa problematização histórica, o historiador em sua investigação experimenta uma aproximação substantiva em relação à historicidade das práticas humanas, aproximando-se daquela multiplicidade existencial de que já falamos — lançando mão de diversas disciplinas que inclinam o pesquisador à iluminação de faces outrora ainda escuras do “dado” que é o passado — , contemplando a complexidade possível do tempo histórico investigado, extraindo de tal densidade as respostas suficientes e modulares para a sua crítica, a sua tensão, a sua dúvida, o seu “problema”, em suma. Entendendo-se, novamente, a história como apreensão da continuidade e unidade da experiência humana através das inúmeras contingentes rupturas, é através dessa crítica-problema que o historiador torna-se capaz de fazer a apreensão da multiplicidade de causalidades influentes em tais rupturas — os porquês da mudança histórica — e, igualmente, daquilo que efetivamente é sinal visível de continuidade.

Eis o que significa para Lucien Febvre e para a Escola dos Annales a história-problema. Ela é, por assim dizer, um pico de uma série de conceitos constitutivos predecessores que levam até ela e dela extraem a sua razão de ser. Uma pirâmide que toma concretude desde o pleroma conceitual mais vago e indefinido da vontade febvriana por uma história universalista e compreensivista, que passa pela realização da unificação científica expressa pela multidisciplinariedade, até o cimo, que é a crítica histórica da história-problema.

MÉTODO COMPREENSIVO

Em conclusão, na revolução epistemológica historiográfica e científica no alvorecer do século XX, no qual Febvre é um dos protagonistas, a verdade histórica assume uma nova postura heurística, ausente da pretensão de reconstituir ou julgar o passado. Segundo as próprias palavras de Febvre, “o historiador não é um juiz. Nem sequer um juiz de instrução. E a história não é julgar, mas compreender. Não cansemos de repeti-lo”.

A formulação da nova noção de cientificidade proposta pelo nosso autor redunda naquela de que a História tem, portanto, de se construir na convivência com a subjetividade do historiador — seus interesses, sua imaginação, sua cultura histórica, suas curiosidades, convicções políticas, etc. É o consentimento para o fato de que, se a objetividade e imparcialidade absolutas são impossíveis, resta o papel da honestidade intelectual e da clareza dos critérios investigativos adotados, da força da teoria e das fontes assumidas. Nesse sentido, a História reconhece o caráter parcial e provisório de suas verdades, sinalizando para a sua necessidade constante de reescrita e reinterpretação pelas novas e constantes gerações. Essa quádrupla herança conceitual encerra, de forma resumida, o legado deixado por Lucien Febvre e pela Escola dos Annales.

OBRAS

Longe de darmos um sumário de tudo que Febvre escreveu em sua vida, passemos para a enumeração de trabalhos que contribuíram para o seu legado e são pertinentes até os dias de hoje. Na transição dos séculos, entre 1899 e 1902, Febvre dedicou-se ao estudo mais aprofundado da história e da geografia, cujo resultado foi a sua tese defendida em 1911 ou 1912, Philippe II et la Franche-Comté. Etude d’histoire politique, religieuse et sociale, um trabalho histórico sobre o rei Filipe II da Espanha que contém muito daquela influência da geografia na pesquisa histórica a qual aludimos acima. Uma sintetização mais elaborada dessa colaboração interdisciplinar, no entanto, viria mais para frente, em 1922, na sua obra La Terre et l’évolution humaine: introduction géographique à l’histoire, batizada em inglês de A Geographical Introduction to History [Uma introdução geográfica à história], cujo título diz tudo.

No ano de fundação da Escola dos Annales, em 1929, viria a ser publicada uma de suas mais importantes obras, Martinho Lutero, um destino, em que Febvre lança mão da biografia como recurso potente de investigação histórica, como mergulho no particular enquanto revelador dos processos condicionantes gerais da mudança histórica; juntamente ainda com o auxílio da geografia para a realização de sua pesquisa — cujos efeitos ainda se fazem presente na escolha do rio Reno como objeto de estudo (ou “problema”) historiográfico no seu The Rhine: Problems of History and Economics, de 1935.

Avançando na maturação pela qual passou nos Annales, Febvre publica a sua obra mais famosa: O Problema da Descrença no Século XVI: A Religião dos Rebelais, uma obra-prima em que se fazem presentes todos os novos conceitos que expomos satisfatoriamente acima. O “problema” aqui circunscrito requer respostas que passam por todos os campos do conhecimento humanos, desde a psicologia, como a própria sociologia, estudo de religiões comparadas, uma boa dose de geografia e a tradicional história política, numismática, etc., mesmo que sua delimitação fuja completamente do espectro tradicional, pois o que se está em foco não é um grande ponto individual do desenvolvimento dos governos, mas um aspecto sociológico e existencial humano, provocado por condicionantes indeterminados à primeira vista.

Em conclusão, não podemos deixar de mencionar Combates pela História (1953) e A Invenção do Livro: O Impacto da Imprensa (1958). Ambas obras de menor importância mas que fulguram na constelação de importantes trabalhos deixados pelo grande pensador da Nova História.

CONCLUSÃO

Ao longo do presente trabalho, questionados como deu-se o interesse humano pela apreensão de sua própria existência contínua ao longo do tempo e do espaço, dos seus porquês e, até mesmo, da sua finalidade. Compreendemos que, nascida de uma ruptura em direção à construção de um progresso social, a História permaneceu, desde sua gênese até boa parte do trajeto de sua edificação, refém deste progresso.

Vimos como a historiografia tradicional, delimitada pela escola metódica alemã e pelos positivistas franceses, preocupados — talvez legitimamente — com a objetividade científica da nova disciplina humanista, foi submetida aos critérios de aprovação científica das outras ciências naturais quantificadoras e matematizantes, que impressionavam dia após dia os homens letrados da Era Contemporânea pelas suas infindáveis conquistas técnicas. Amantes de tal progresso e preocupados com o destino de suas nações, a opção pela exclusividade narrativista de uma história política legitimada pelos documentos oficiais produzidos por esta mesma potestade parecia o caminho mais óbvio a se tomar.

Contudo, com a virada do século, certos historiadores, cansados da velha História já igualmente fatigada, propuseram uma virada epistemológica, abraçando com fervor em seu espírito novas noções menos exclusivistas, que encerram primícias de uma visão mais ampla e conjuntural da ação humana num tempo e espaço cujas relações são mais próximas e menos estanques, e que abrigam condicionantes mais complexos, testemunhas de uma realidade não fraturada e mais ampla; total, por assim dizer. Assim sendo, apenas um princípio epistemológico formalmente distinto do anteriormente adotado pela historiografia e igualmente complexo e aberto, relativo e multifacetado, aberto para a multidisciplinaridade, seria capaz de abarcar e apreender esta realidade cuja substância é uma síntese de multiplicidades relacionais.

Entendemos como Henri Berr foi o primeiro a apontar para algo assim, quando buscou as primícias de tal princípio, em um projeto que unificasse as diversas disciplinas humanas em uma algo de única e comum essência gnosiológica, fundando a possibilidade para uma multidisciplinariedade concreta; tal projeto foi levado adiante por Lucien Febvre. Nosso autor, contudo, decidiu ir além, emergindo deste lago conceitual que se define por uma vontade compreensivista ainda pouco definida, e foi, ao longo dos anos e através de suas obras, cunhando conceitos chaves para o novo estilo de historiografia.

Percebemos como em seus primeiros anos já se fazia presente a interação da Geografia com a História — e posteriormente a Psicologia — testemunhando que a historicidades dos eventos humanos interagem com diversos afluentes a-históricos, como a física e a biologia do espaço natural em que a História em si ocorre, fundindo o tempo-espaço em uma unidade complexa e mais densa do que antes fora considerada em suas relações recíprocas.

Por fim, testemunhamos como interagem entre si, e de que substância comum partem as idéias compostas por Febvre, isto é, a síntese histórica e sua história total, bem como a história-problema e o método compreensivo como objetivo historiográfico último. Definimos, enfim, que tais conceitos formam uma “quádrupla herança” (apropriando-me do termo de Júlia S. Matos, ainda que em sentido equívoco), ou uma quádrupla aresta de um cimo que emerge de uma vontade inerentemente modernista (ou simplesmente moderna), inovadora e revitalizadora que agiu e age no seio da historiografia desde a primeira metade do século XX.

O legado de Lucien Febvre vive e dele nutriram-se e nutrem-se ainda diversos historiadores em formação, pois seus conceitos, ainda hoje, permanecem como fonte viva, mesmo que abertas a uma constante mutação, pois como admitiu o próprio Febvre, a mudança é uma característica dos Annales: “Ora, viver é mudar”. No embargo da mudança, a continuidade permanece para a hermenêutica de quem tem paixão pela vida e pela história para pesquisá-la de forma vívida e séria e, assim como Febvre um dia escreveu, como testemunho do peso dos grandes eventos sociais e seus personagens, Martinho Lutero, um destino, alguém um dia talvez escreverá: Lucien Febvre, um destino.

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João Guilherme Pianezzola

“Pois nele vivemos, nos movemos e existimos” — Atos 17:28.