Estudos da Patrística: Padres Apostólicos
O s padres apostólicos, como o próprio nome diz, são sacerdotes da recém formada Igreja de Cristo que viveram, ou em contato direto, ou com pessoas que tiveram contato direto com os Apóstolos. Por esse motivo o relato de suas vidas e as palavras que disseram nos são tão preciosas. São uma janela para a Igreja Primitiva.
Pais da Igreja e assuntos a serem estudados ao longo deste artigo: São Clemente de Roma, Santo Inácio de Antioquia, São Policarpo de Esmirna, São Papias de Hierápolis, assim como a carta de Barnabé e o livro Pastor de Hermas.
Ao final deste artigo, disponibilizei um link onde se encontra o livro do qual saiu este resumo, assim como os outros livros de patrologia publicados pela Paulus, para que o leitor possa checar melhor as fontes.
Período histórico:
O conceito de antiguidade, o período onde a patrística está inserida, segundo muitos especialistas é que, para o Ocidente (a Igreja latina) é um período que vai desde a geração apostólica e se estende até Isidoro de Sevilha (560–636). Para o Oriente (Igreja grega), a antiguidade se estende até pouco mais até a morte de São João Damasceno (675–749).
1. São Clemente de Roma:
Clemente Romano viveu na época apostólica, e muitos estudiosos o identificam como sendo colaborador de Paulo Apóstolo: “Rogo também a ti, Sízigo, fiel companheiro, que lhes prestes auxílio, porque me ajudaram na luta pelo evangelho, em companhia de Clemente e dos demais auxiliadores meus (…)” (Fl 4,3), e talvez tenha sido Orígenes o primeiro a aponta-lo como o mesmo da lista dos colaboradores de Paulo.
Eusébio de Cesareia também o declara como sendo o sucessor de Pedro Apóstolo enquanto bispo da Igreja de Roma e também como o colaborador de Paulo: “(…) Anacleto, tinha sido bispo da Igreja dos romanos durante doze anos, foi substituído por Clemente que o Apóstolo, em sua carta aos Filipenses, declara ter sido seu colaborador (…)” (HE, III,15). Ireneu de Lião também reconhece Clemente como o terceiro sucessor de Pedro na Cátedra de Roma e como tendo conhecido o apóstolo pessoalmente.
Clemente também é tido como tradutor da Carta aos Hebreus, tento a forte opinião de Orígenes a respeito: “Se tivesse que dar minha opinião, diria que o fundo ou os pensamentos são, certamente, do Apóstolo (isto é, Paulo); porém, o estilo e a composição, de alguém que consignava as recordações apostólicas e que apostilara, por assim dizer, o dito pelo mestre. Pois bem, (…) a história que chegou até nós é dupla. Uns dizem que a escreveu Clemente, e que foi bispo dos romanos, outros, que Lucas, o autor do Evangelho e dos Atos”.
Portanto, uns dizem ser Clemente o tradutor da Carta de S. Paulo aos Hebreus, pois a Carta de Clemente aos Coríntios conserva o mesmo estilo literário, conquanto a Carta aos Hebreus conserve por trás desse estilo, os pensamentos, a “essência” do apóstolo Paulo. Na carta clementina também podemos atestar sua a origem judaica através dos grandes elementos que atestam um grande conhecimento sobre o Antigo Testamento e tradições do pensamento judaico. Por isso diz Lebreton: “A contemplação habitual da obra criadora, a paternidade divina concebida como a relação que religa o Demiurgo às suas criaturas melhor que como o laço íntimo nascido da adoção divina: era este o quadro tradicional do pensamento religioso dos judeus, Clemente o recebe e o respeita”. Clemente também cita muitos filósofos do judaísmo helenístico como Eurípedes e Sófocles.
A carta com verdadeira autoria de Clemente é a Carta de Clemente aos Coríntios, mandada para a Igreja de Corinto, na Grécia, devido ao mal comportamento dos locais, pois lá estavam acontecendo revoltas, retorno ao pecado, desobediência aos presbíteros, etc. Clemente seguiu o exemplo de São Paulo que também endereçou uma carta aos coríntios pelos mesmos motivos.
Uma análise da Carta:
Já atestamos as origens do pensamento judaico de Clemente através dos elementos literários contidos em sua carta, mas também é possível achar a razão pela qual ele pode ser verdadeiramente chamado de Clemente Romano nos primeiros capítulos. É presente um grande apreço de Clemente pela ordem, hierarquia, disciplina e obediência quase militares, que o fazem digno de um bom romano. É primeiramente através da observação destes valores que ele exorta os coríntios. Temos este bom exemplo: “Irmãos, militemos com toda a nossa prontidão sob as ordens irrepreensíveis dele. Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos governantes: com que disciplina, docilidade e submissão eles executam as funções que lhes são designadas!”.
Uma síntese de Harneck sobre a Carta nos diz: “a melhor introdução à história antiga da Igreja”. Com razão, pois ela será importante abortando tópicos como jurisdição eclesiástica, sucessão apostólica, hierarquização dos membros da comunidade, etc. “A Igreja aparece fundada sobre a autoridade imediata dos apóstolos. É una, apostólica, Corpo de Cristo.”
Trechos que considerei importantes:
Só Deus justifica
“Portanto, todos foram glorificados e engrandecidos, não por eles mesmos, nem por suas obras, nem pela justiça dos atos que praticaram, e sim por vontade dele. Por conseguinte, nós, que por sua vontade fomos chamados em Jesus Cristo, não somos justificados por nós mesmos, nem pela nossa sabedoria, piedade ou inteligência, nem pelas obras que realizamos com pureza de coração, e sim pela fé; é por ela que Deus Todo-poderoso justificou todos os homens desde as origens. A ele seja dada a glória pelos séculos dos séculos. Amém.”
Mas é preciso fazer o bem
“Que faremos então irmãos? Cessaremos de fazer o bem e abandonaremos a caridade? Jamais permita o Senhor que isso aconteça entre nós! Ao contrário, esforcemo-nos com zelo e ardor para praticar toda obra boa. O próprio Criador e Senhor se alegra com todas as suas obras.” (…)
“Vemos que todos os justos foram ornados com boas obras, e o próprio Senhor, ornado com suas boas obras, se alegrou. Portanto, tendo esse modelo, guiemo-nos, sem tardar, segundo sua vontade; com toda a nossa força, apliquemo-nos à prática da justiça.” (…) “É preciso, portanto, que sejamos prestimosos em fazer o bem. Com efeito, é dele que provêm todas as coisas. Ele declara: ‘Eis o Senhor; seu salário está diante dele, para retribuir a cada um segundo sua obra.’ Portanto, ele nos exorta a crer nele de todo o coração, não sendo inoperantes e desleixados em nenhuma boa obra.”
A sucessão apostólica
“Os apóstolos receberam do Senhor Jesus Cristo o Evangelho que nos pregaram. Jesus Cristo foi enviado por Deus. Cristo, portanto, vem de Deus, e os apóstolos vêm de Cristo. As duas coisas, em ordem, provêm, da vontade de Deus. Eles receberam instruções e, repletos de certeza, por causa da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, fortificados pela palavra de Deus e com a plena certeza dada pelo Espírito Santo, saíram anunciando que o Reino de Deus estava para chegar. Pregavam pelos campos e cidades, e aí produziam suas primícias, provando-as pelo Espírito, a fim de instituir com elas bispos e diáconos dos futuros fiéis. Isso não era algo novo: desde há muito tempo, a Escritura falava dos bispos e dos diáconos. Com efeito, em algum lugar está escrito: ‘Estabelecerei seus bispos na justiça e seus diáconos na fé’”.
(…)
“Nossos apóstolos conheciam, da parte do Senhor Jesus Cristo, que haveria disputas por causa da função episcopal. Por esse motivo, prevendo exatamente o futuro, instituíram aqueles de quem falávamos antes, e ordenaram que, por ocasião da morte desses, outros homens provados lhes sucedessem no ministério. (…)”
2. Santo Inácio de Antioquia:
Seu nome, apesar de ter nascido em Antioquia (atual Antáquia, na Turquia), é de origem latina. Inácio, ou Ignatius, vem de igne e natus, nascido do fogo, e descreve bem a sua vida, quase uma profecia de um homem que queimava em amor ardente por Cristo que se entregou com bravura ao doloroso martírio.
Segundo o relato de Eusébio de Cesareia, Inácio foi o segundo bispo de Antioquia: “Mas, depois que Evódio fora estabelecido o primeiro sobre os antioquenos, Inácio, o segundo, reinava no tempo do qual falamos” (HE, III,22).
O que temos dos escritos de Santo Inácio foram suas cartas a diversas comunidades e companheiros de cargo e de fé escritas enquanto ele ia da Síria rumo a Roma para seu martírio pelas feras, sobre o qual demonstrava imensa calma e alegria, pois estava convencido de que pelo martírio ele se transformaria no “trigo purificado de Cristo”. Inclusive, em sua Carta aos Romanos, ele pede à comunidade de Roma para que não tentem evitar a sua morte.
A estrutura de suas cartas segue sempre uma mesma esquemática: (1) uma saudação, (2) um elogio às qualidades da comunidade, (3) recomendações sobre (a) a fuga das heresias e (b) uma exortação ao fortalecimento e unidade da comunidade pela submissão ao bispo; (4) saudação final e pedido de preces para a Síria e/ou envio de algum diácono.
É interessante notar o quão presente é nas cartas de Santo Inácio a sua ênfase à figura do bispo, tido como necessário para a comunidade cristã, peça chave na cadeia eclesiástica e que todos devem estar-lhe submissos. É também, em uma de suas frases de exaltação do episcopado que Inácio profere as palavras “Igreja católica”, referência mais antiga que temos dessa nomenclatura, no sentido de igreja universal em oposto a igreja particular: “Onde aparece o bispo, aí esteja a multidão, do mesmo modo que onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja católica.” (Inácio aos Esmirniotas; 8,2). A ênfase à figura do bispo pode ser vista também como um reforço à noção da estrutura eclesiástica como sendo plenamente visível e derivada da sucessão apostólica, completamente una e Corpo de Cristo.
Trechos importantes:
Unidade através da submissão ao bispo
“É por isso que desejo vos exortar a caminhar de acordo com o pensamento de Deus. De fato, Jesus Cristo, nossa vida inseparável, é o pensamento do Pai, assim como os bispos, estabelecidos até os confins da terra, estão no pensamento de Jesus Cristo. Convém caminhar de acordo com o pensamento de vosso bispo, como já o fazeis. Vosso presbitério, de boa reputação e digno de Deus, está unido ao bispo, assim como as cordas à cítara.”
(Inácio aos Efésios; 3,2)
“Não façais nada sem o bispo, guardai vosso corpo como templo de Deus, amai a união, fugi das divisões, sede imitadores de Jesus Cristo, como ele também o é do seu Pai.”
(Inácio aos Filadenfienses, 7)
“É bom reconhecer a Deus e ao bispo. Quem respeita o bispo, é respeitado por Deus; quem faz algo às ocultas do bispo, serve ao diabo.”
(Inácio aos Esmirniotas, 9)
Cuidado com os judaizantes
“Aqueles que viviam na antiga ordem de coisas chegaram à nova esperança, e não observam mais o sábado, mas o dia do Senhor, em que a nossa vida se levantou por meio dele e da sua morte.”
(Inácio aos Magnésios; 9,1)
“É absurdo falar de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, judaizar. Não foi o cristianismo que acreditou no judaísmo, e sim o judaísmo no cristianismo, pois nele se reuniu toda língua que acredita em Deus.”
(Idem; 9,3)
“Se alguém vos interpreta o judaísmo, não o escuteis, porque é melhor ouvir o cristianismo de homem circuncidado do que o judaísmo de incircunciso. Se ambos não falam a respeito de Jesus Cristo, são para mim estelas e túmulos de mortos, sobre os quais estão escritos somente nomes de homens.”
(Inácio aos Filadenfienses, 6)
Fugir da heresia
“Aqueles que, para terem crédito, misturam Jesus Cristo consigo mesmos, são como aqueles que oferecem veneno mortal misturado com vinho melado.”
(Inácio aos Tralianos, 6)
Unidade e Eucaristia
“Se alguém segue cismático, não herdará o Reino de Deus. Se alguém caminha em conhecimentos estranhos, esse não participa da Paixão.”
(Inácio aos Filadenfienses; 3,3)
“Preocupai-vos em participar de uma só eucaristia. De fato, há uma só carne de nosso Senhor Jesus Cristo e um só cálice na unidade do seu sangue, um único altar, assim como um só bispo com o presbitério e os diáconos, meus companheiros de serviço. Desse modo, o que fizerdes, fazei-o segundo Deus.”
(Idem; 4)
3. São Policarpo de Esmirna:
Policarpo foi bispo de Esmirna, citado por nosso anterior Inácio, e foi seu discípulo ninguém menos que Ireneu de Lião, este que cita Policarpo em vários de seus escritos.
Uma dessas citações de Ireneu é quando ele conta que certa vez, por volta do ano 155, sob o pontificado de Aniceto, Policarpo empreendeu uma viagem a Roma para discutir com o papa a data da celebração da Páscoa. Ireneu então por volta do ano 170, sob o pontificado do Papa Vítor, utiliza o episódio para discutir e convencer o pontífice, que estava tentando forçar os orientais a aceitar os costumes pascoais do ocidente, sob pena de excomunhão das Igrejas da Ásia. Escreve-nos Eusébio de Cesareia: “Apelando para a autoridade do apóstolo João, foi à Roma discutir com o Papa Aniceto a data da celebração da Páscoa, em 155, tentando um acordo. (…) Aniceto não persuadiu Policarpo a deixar de observar o que com João, o discípulo de nosso Senhor, e com os outros apóstolos (…), tinha sempre observado. Policarpo, por sua vez, não conseguiu reverter a observância de Aniceto que lhe dizia ser necessário conservar o costume dos presbíteros que o tinham precedido. As coisas estavam assim, permaneceram unidos um a outro, e à celebração, Aniceto cedeu a eucaristia a Policarpo, evidentemente por deferência, e eles se deixaram em paz, e na Igreja todos tinham a paz, guardassem ou não a observância”.
Em Esmirna mesmo Policarpo sofreu um corajoso martírio, aos 86 anos. Foi queimado vivo no circo rodeado de judeus e pagãos que se regozijavam com a morte do velho homem gritando: “Eis o doutor da Ásia, pai dos cristãos, o destruidor dos nossos deuses!”.
A obra de Policarpo não é extensa. O que dele nos foi conservado são suas duas cartas aos filipenses. A carta (no singular pois a primeira tem apenas um parágrafo!) tem um estilo literário simples, com uma cristologia simples. Ela carece da rica estilística e precisão teológica de Inácio, mas é cheia de bons conselhos e admoestações, recomendações para fuga das heresias, respeito e submissão aos presbíteros e diáconos, perseverança na prática da caridade, dicas de comportamentos para os jovens, os esposos, as viúvas e as virgens.
O relato de seu martírio chegou até nós por meio de um autor anônimo, que por volta do ano 400 se fez passar por um tal de Piônio de Esmirna (morto em 250), que escreve relatando o martírio de São Policarpo. Este texto é o primeiro a usar o termo “mártir” para designar o cristão morto pela fé.
Trecho do relato de “Piônio” sobre o martírio de Policarpo:
14. “Então não o pregaram, mas o amarraram. Com as mãos amarradas atrás das costas, ele parecia um cordeiro escolhido de grande rebanho para o sacrifício, holocausto agradável preparado para Deus. Erguendo os olhos ao céu, disse: ‘Senhor, Deus todo-poderoso, Pai de teu Filho amado e bendito, Jesus Cristo, pelo qual recebemos o conhecimento do teu nome, Deus dos anjos, dos poderes, de toda criação e de toda a geração de justos que vivem na tua presença! Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo. Com eles, possa eu hoje ser admitido à tua presença como sacrifício gordo e agradável, como tu preparaste e manifestaste de antemão, e como realizaste, ó Deus sem mentira e veraz. Por isso e por todas as outras coisas, eu te louvo, te bendigo, te glorifico, pelo eterno e celestial sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja dada glória a ti, com ele e o Espírito, agora e pelos séculos futuros. Amém.’”
O martírio de Policarpo foi rápido. Após sua morte um bom aroma lotou o circo, e o santo homem previu como haveria de ser seu martírio na noite anterior enquanto sonhava que seu travesseiro pegava fogo, e exclamou: “Devo ser queimado vivo!”. Em seu julgamento Policarpo demonstrou imensa calma e coragem, aceitando com mansidão a ira do procônsul bem como a dos judeus e dos pagãos. Em nenhum momento cogitou negar Jesus Cristo ou oferecer tributos indevidos ao César.
4. Pastor de Hermas:
Esta obra é um apócrifo controverso, tida por alguns Pais da Igreja como divinamente inspirada posta inclusive no Cânon do Novo Testamento. Eusébio afirma que Ireneu é um dos que tem grande estima por este documento e a tem por canônica. Outros a rejeitam por completo e não a recomendam ao cânon, porém muitos consideram a obra de grande valia espiritual e que deveria ser lida por aqueles que recém entraram para a Igreja. Atanásio e S. Jerônimo eram desta opinião. O Pastor, inclusive, era lido em algumas igrejas da Grécia na época.
O conteúdo do Pastor é bastante apocalíptico (no sentido de ser parecido com o Apocalipse), cheia de parábolas, alegorias e visões de seres celestes e anjos. O texto enfatiza muitíssimo a necessidade absoluta do batismo e da penitência. Enfatiza também a figura da Igreja, como instituição que precede o mundo e para qual o mundo foi criado. A Igreja aparece na obra através das emblemáticas figuras da Torre e da mulher idosa.
O Pastor exorta os fiéis leitores a necessidade do batismo, da penitência e das boas obras e dos mandamentos que alegram a Deus, bem como nos recomenda a ficarmos longe das más obras que nos fazem servir ao diabo.
Um dos “problemas” com a obra é sua cristologia, principal motivo que fizeram alguns dos Pais doutores a crerem que ela, ainda que de grande importância, não era divinamente inspirada. Expliquemos. Na obra lê-se: “Deus fez habitar na carne que ele havia escolhido o Espírito Santo preexistente, que criou todas as coisas. Esta carne, em que o Espírito Santo habitou, serviu muito bem ao Espírito, andando no caminho da santidade e pureza, (…) participou dos trabalhos do Espírito (…), por isso, Deus a escolheu como companheira do Espírito Santo”. Lendo esta passagem, dificilmente alguém deixará de pensar que foi o Espírito Santo quem se encarnou, e não o Filho.
Trechos da obra:
“… porque o homem justo tem pensamentos justos. É mediante esses pensamentos justos que ele aumenta sua glória nos céus e faz que o Senhor lhe seja indulgente para com todos os seus atos. Aqueles, porém, que são maus no coração, só atraem para si morte e prisão, sobretudo aqueles que passam esta vida se vangloriando de suas riquezas e não se interessam pelos bens futuros.”
(Vis. I; 1,8)
“Terminaram os dias de penitência para todos os santos. Contudo para os pagãos, a penitência pode ser feita até o último dia.”
(Vis. II; 6,5)
A analogia da Igreja:
“Eu lhe perguntei: ‘Quem é então?’ Ele me respondeu: ‘É a Igreja.’ Eu lhe perguntei: “Então, por que era tão idosa?” Ele respondeu: ‘Porque foi criada antes de todas as coisas. Por isso, ela é idosa. Foi por meio dela que o mundo foi ordenado.’”
(Vis. III; 9,9)
“Quis então sentar-me à direita; ela porém não me permitiu, e me faz sinal com a mão para sentar à esquerda. Eu estava pensativo e triste, porque ela não me permitira sentar à direita. Então ela me disse: “Estás triste, Hermas? O lugar da direita está reservado para outros, para os que já agradaram ao Senhor e sofreram por causa do Nome. Ainda te falta muito para poderes sentar-te com eles. Contudo, persevera na tua simplicidade, como fizeste até agora e sentarás ao lado deles e também com todos aqueles que farão o que eles fizeram e sofrerão o que eles sofreram. (…) Eu lhe perguntei: “O que é que sofreram?” Ela me respondeu: “Ouve: açoites, prisões, grandes tribulações, cruzes, feras, tudo por causa do Nome. É por isso que está reservado para eles o lado direito do santuário, a eles e a todo aquele que sofre por causa do Nome. Os outros ficam do lado esquerdo. Mas uns e outros, os que estiverem sentados à direita e os que estiverem à esquerda, gozam dos mesmos dons e das mesmas promessas. Os que estão sentados à direita, porém, têm glória particular. Tu desejas sentar à direita com eles, mas teus defeitos são numerosos. Deverás ser purificado de teus defeitos, e todos aqueles que não tiverem duvidado serão purificados de todos os seus pecados cometidos até hoje.”
(Vis. III; 10,1)
O próximo trecho é melhor ser narrado:
O nosso personagem então, enquanto conversa com a mulher idosa [a Igreja] sentado à sua esquerda, tem com ela outra visão: uma grande torre sendo construída sobre as águas. O homem então pergunta à mulher: “Por que a torre está sendo construída sobre as águas?”. E a mulher responde que a torre está sendo construída sobre as águas do batismo do Nome de Nosso Senhor.
Então, o homem vê que os seis homens que constroem a torre, que são os anjos, encaixando as pedras quadradas perfeitamente umas nas outras, negligenciam outras pedras que se perdem pelo caminho. Umas ficam caídas, mas perto da torre; outras rolam para o fogo, outras estão rachadas e outras arredondadas, e não são usadas para construir a torre. A mulher então explica as analogias: as pedras que caem, mas ficam perto da torre, são os fiéis que não são perfeitos o suficiente para fazerem parte da construção, mas se fizerem penitência, no futuro serão. As cortadas fora e jogadas para longe, são os hipócritas filhos da iniquidade que não se arrependem. As rachadas são as pessoas rancorosas, que não preservam a paz entre si. As arredondadas são as pessoas com grande riqueza, que são apegadas a ela e precisam desapegar-se, simbolizado pela necessidade de se cortar a pedra a fim de que ela fique reta, perdendo uma parte de si. E, finalmente, as que caem ao fogo são as que se perdem eternamente.
E ainda:
“Vês sete mulheres ao redor da construção?” Eu respondi: “Sim, senhora.” (Ela continuou:) “A torre é sustentada por elas, por ordem do Senhor. Ouve agora as funções que elas desempenham. A primeira, de mãos fortes, se chama Fé. É por meio dela que os eleitos do Senhor são salvos. segunda, que tem cinto e aspecto viril, chama-se Continência, e é filha da Fé. Todo aquele que a segue é feliz durante a vida, porque se abstém de toda má ação, crendo que, por se abster de todo desejo perverso, herdará a vida eterna.” Eu então perguntei: “Senhora, e quem são as outras?” (Ela continuou:) “Elas são filhas uma da outra e se chamam Simplicidade, Ciência, Inocência, Santidade e Caridade. Portanto, se realizares todas as obras da mãe delas, viverás.”
(…) Da Fé nasce a Continência; da Continência, a Simplicidade; da Simplicidade, a Inocência; da Inocência, a Santidade; a Santidade, a Ciência; da Ciência, a Caridade.”
(Vis. III, 16)
Trechos das parábolas:
O jejum
“Escuta. Deus não deseja esse jejum vazio. Com efeito, jejuando desse modo para Deus, não farás nada para a justiça. Jejua do seguinte modo: faças nada de mau em tua vida e serve ao Senhor de coração puro; observa seus mandamentos, andando conforme seus preceitos, e que nenhum desejo mau entre em teu coração, e crê em Deus. Se fizeres isso e o temeres, abstendo-te de toda obra má, viverás em Deus. Se cumprires essas coisas, farás um jejum grande e agradável ao Senhor.”
“Se fizeres algo de bom, além do mandamento de Deus, conseguirás glória maior e serás glorificado junto a Deus, mais do que deverias ser.”
“Se os mandamentos do Senhor são observados, teu jejum é muito bom.” (Parábola V; 54, 4–56,5)
5. Carta de Barnabé:
A carta de Barnabé é um documento do gênero epistolar feita para a comunidade de Alexandria explicando pontos principais da doutrina cristã, o significado da paixão de Cristo e sua divindade. A carta é pobre em estilística e às vezes é sofrível a leitura.
A carta apresenta semelhanças com a Didaqué em algumas passagens, e alguns historiadores apontam esta como sendo inspirada naquela.
6. A Didaquê:
A Didaquê ou Ensino dos Doze Apóstolos foi descoberto através de uma cópia em Constantinopla em 1873, datada de 1056. Foi muito difundida no Oriente, e é tida como o documento mais importante da era pós-apostólica imediata. A Didaquê é datada como sendo escrita por volta de 90–120 d.C. e é, antes de mais nada, um compêndio de preceitos morais, de instrução sobre a organização das comunidades, sobre a oração, o jejum, a administração do batismo e a celebração da eucaristia. A Didaquê, juntamente com os livros do Antigo Testamento de Tobias, Judite, Ester, Sabedoria, Salomão e Eclesiástico era usada como catequese e instrução aos convertidos.
Debate-se muito sobre a época da composição do documento, contudo, o estado das comunidades cristãs que se descreve aí é inteiramente análogo ao dos últimos tempos apostólicos, além de que outros indícios, como o título de “Servo de Deus” para Jesus, a simplicidade litúrgica, o batismo em água corrente, nenhuma preocupação com um credo universal, nenhuma referência aos livros do Novo Testamento, inclinam a indicar para sua composição os últimos decênios dos século I, mais em particular em torno dos anos 80–90 d.C.
Sobre o autor, podemos deduzir pela escolha do material, pelo espírito que o anima, pela experiência que revela e seu minucioso conhecimento da liturgia e usos eclesiásticos, somos induzidos a crer que ele era um ministro sagrado de idade avançada, formado na escola de Tiago Menor, que teria imigrado para a Síria por ocasião da guerra civil.
Os cc. 1–6 formam uma parte doutrinal ou catequética. Contêm instruções morais, orientações sobre a maneira de instruir os catecúmenos. Os cc. 7–10 formam a segunda parte. Dão instruções litúrgicas. Instruções sobre o modo de administrar o batismo, sobre o jejum, a oração e a eucaristia. A terceira parte é composta pelos cc. 11–15. Eles expõem as instruções disciplinares e prescrevem o que há de ser observado pelos fiéis que vêm de fora e o que devem fazer na comunidade
Essas regras denotam o estado de transição por que passa a Igreja. É difícil precisar as funções dos ministros. É mesmo provável que, sob nomes diferentes, realizavam as mesmas funções. Tem-se a impressão que uma hierarquia começava a se formar na base dos epíscopoi e diáconoi, aos quais se ajuntavam em certas ocasiões, principalmente para a pregação e o ensino, o apóstolo, ou o profeta ou o doutor. Só os epíscopoi e os diáconoi são objeto de uma eleição e de uma espécie de consagração. Não há nenhum sinal de um episcopado monárquico e nunca se menciona a palavra presbíteroi.
Nas cartas de Santo Inácio de Antioquia, datadas de não muito posterior, vemos muita menção à figura do bispo. Como é isso? Talvez devido ao fato de que a organização episcopal se tornou mais forte posteriormente e fora da Palestina, na região das missões em que se precisava de uma organização centralizada mais forte. Assim nos diz uma das notas de rodapé: “A Igreja nascente viu-se logo diante de dois modelos de comunidade. O primeiro era a comunidade palestinense, mais ligada à tradição, e onde estavam presentes os apóstolos e presbíteros. Na Didaqué, as figuras dos apóstolos, profetas e mestres parecem lembrar esse tipo de Igreja, de modelo judaico, onde também encontramos os sacerdotes, profetas e mestres de sabedoria. O outro modelo nasceu fora da Palestina, e era muito mais voltado para a missão e as necessidades que daí surgiam. Esse segundo tipo de Igreja logo teve necessidade de servidores para a comunidade (diáconos) e de supervisores para as diversas comunidades (bispos), escolhidos em clima democrático.”
A Didaquê contém instruções catequéticas bastante básicas para o fiel de hoje. No entanto é interessante notar que a forma como ela instrui o batismo:
“Quanto ao batismo, procedam assim: Depois de ditas todas essas coisas, batizem em água corrente, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Se você não tem água corrente, batize em outra água; se não puder batizar em água fria, faça-o em água quente. Na falta de uma e outra, derrame três vezes água sobre a cabeça, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Antes do batismo, tanto aquele que batiza como aquele que vai ser batizado, e se outros puderem também, observem o jejum. Àquele que vai ser batizado, você deverá ordenar jejum de um ou dois dias.”
Instrui-se o jejum do batizado e dos batizantes antes do batismo, bem como instrui-se o batismo para ser feito de preferência em água corrente.
Há também na Didaquê na parte sobre a oração, a instrução para se rezar o Pai Nosso três vezes ao dia.
O trecho mais importante da Didaquê, creio, seja este, sobre a celebração dominical:
“Reúnam-se no dia do Senhor para partir o pão e agradecer, depois de ter confessado os pecados, para que o sacrifício de vocês seja puro. Aquele que está de briga com seu companheiro não poderá juntar-se a vocês antes de se ter reconciliado, para que o sacrifício que vocês oferecem não seja profanado. Esse é o sacrifício do qual o Senhor disse: ’Em todo lugar e em todo tempo, seja oferecido um sacrifício puro, porque eu sou um grande rei, diz o Senhor, e o meu Nome é admirável entre as nações.’”
Aqui é ressaltado que, deste a época apostólica, se aconselha para que o dia do Senhor seja no domingo, após o sábado, e neste dia os fiéis devem se reunir para celebrar a eucaristia.
Este artigo foi apenas um resumo do primeiro volume da Coleção Patrística em língua portuguesa publicada pela Editora Paulus, em mais de 40 volumes. Aconselho a todos a leitura completa da Patrologia, pois este resumo não substitui a leitura do material completo.
Aqui está um link para meu MEGA com todos os volumes que pude encontrar: https://mega.nz/#F!r8ExVQ4B
Boa leitura e obrigado!