Eric Voegelin & a Modernidade

João Guilherme Pianezzola
18 min readJul 7, 2021

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A Modernidade, compreendida enquanto período histórico que se estende do fim do medievo até a era das grandes revoluções, é um fenômeno cuja essência é de difícil descompactação e compreensão. A própria definição deste período como “moderno” marca o seu confronto qualitativo, segundo os juízos daqueles que impuseram este nome, com aqueles períodos “não-modernos” que o precederam na sucessão cronológica das eras e com aquilo, consequentemente não definido, que poderá vir após a “modernidade”. Ela abriga dentro de si própria a gênese da História enquanto disciplina humana do conhecimento e encerra em si uma disputa concernente à possibilidade de hermenêutica das continuidades da História entre as suas rupturas e as reformas.

Muitos foram os historiadores que tentaram fornecer respostas para esta compreensão. De fato, Leibniz foi o primeiro a compreender a necessidade do estudo histórico como projeto sério e científico. Após ele, a primeira escola de grande porte que tentou levar este projeto a uma plena realização foi, na Alemanha, a escola metodológica ou metódica. Comprometidos, contudo, na subordinação da ciência histórica às prescrições dos métodos naturalistas e matematizantes e por demais metida com a história pública e política, os metódicos foram duramente criticados posteriormente pelos annalistes e sua nova-história substancialmente modernista e inovadora, focada na compreensão da história como processo particular influenciado por determinantes a-históricas múltiplas e no método científico como compreensão de um “problema” particular.

Eric Voegelin, professor de filosofia política nascido em Viena em 1901 é, de fato, tido em alta estima por conservadores contemporâneos pela sua resistência intelectual antinazista e anticomunista, inserida num panorama condenatório dos totalitarismos como síntese daquilo que, para ele, representa a modernidade. Igualmente, a sua fuga das forças nazistas em 1938 para os Estados Unidos, e sua consequente rendição de louvores à liberdade americana frente à tirania europeia, fez com que Eric Voegelin aparentemente fulgurasse no pleroma de intelectuais liberal-conservadores do século XX. Contudo, a cuidadosa análise de seu método de análise histórico-político faz-lhe aparentar muito mais aos modernistas da Escola dos Annales do que com qualquer outra escola que era-lhe contemporânea. Para Voegelin, a análise histórica se dava pelo afastamento da investigação das “Ideias” tomadas em si mesmas, e partia da investigação da própria estrutura da experiência humana que originava as ideias políticas; preenchendo, desta forma, a análise histórica com problemáticas de teor interdisciplinar e deixando o tempo histórico menos passivo e mais indeterminado.

O fenômeno da modernidade, para Voegelin, em resumo, é inteligível como uma severa ruptura com aquilo que a precedeu, isto é, a ordem orgânica social construída pelo cristianismo concebida como unidade em torno de um imperium espiritual e da Igreja cristã universal. Seu parecer, portanto, privilegia o cristianismo como um cume do qual a modernidade passou a progressivamente declinar. Contudo, Voegelin vê o cristianismo menos como uma doutrina ontologicamente superior às demais e mais como uma época em que a “verdade da alma” foi “descoberta” e estava em sintonia com as volições políticas da sociedade, propiciando uma época de consciência coletiva saudável e de experiências intelectuais e espirituais de alto nível, semelhante àquelas experienciadas pelos gregos clássicos e pelos israelitas, que semelhantemente também experienciaram períodos de severo declínio, desordem e convulsão social, que Voegelin denomina de “pneumopatologias”. Para Voegelin, à vista disso, o mistério último da história são as causas originárias de tais “insights” propiciatórios da ordem da alma e da Pólis juntamente com o motivo da patologia social que gera seu abandono e instaura os períodos de crise, como a crise da Grécia pós-helênica e da modernidade pós-cristianismo.

Em suma, é impossível, para Voegelin, compreender a modernidade sem compreender o cristianismo e a experiência social e simbólica instaurada por ele, uma vez que o seu abandono não representa um retorno a uma ordem anterior abandonada, como o politeísmo greco-romano, mas uma perversão de seus conceitos e ideias basilares provocada pela sua pneumopatologia que, na vez do cristianismo, Voegelin chamará de “Gnose”. A Gnose é a essência da Modernidade, porém, ao contrário de um historiador cristão tradicional, a originalidade de Voegelin consiste em admitir que a essência da patologia gnóstica está, de alguma forma, na essência ou natureza da própria experiência cristã histórica, como veremos adiante. Igualmente, Voegelin admite, de forma bastante alheia à ortodoxia judaico-cristã, que a pneumopatologia dos antigos israelitas se encontrava, sob certo aspecto, na própria “fé metastática” de Isaías: uma fé tão forte que vincula a consciência na crença de que Yaweh virá e salvará o seu povo através de uma completa transfiguração da realidade política, que Voegelin afirma ser espelhada, de alguma maneira, no afã dos revolucionários modernos de transformar a realidade, dessa vez contudo, pelas suas próprias mãos, e não pela destra poderosa de Yaweh, ao que Voegelin tardou para atentar-se e corrigir em seus trabalhos.

Tal linha de pensamento coloca Voegelin em uma posição extremamente original. Contrasta sobremaneira tanto com o estereótipo de historiador cristão e tradicionalista — principalmente quando se atenta às suas críticas contundentes à reforma protestante — como com o pesquisador moderno desatento às rupturas patentes da Modernidade e Contemporaneidade. Seus conceitos sobre a consciência pneumopatológica, a experiência como fonte principal de pesquisa e a Gnose em contraste com o cristianismo de vocação eclesiástica e universal como pontos de referência para a compreensão da modernidade enquanto ruptura são definitivamente úteis.

“Gnosticismo — a natureza da modernidade”

A mais extensa obra de Eric Voegelin é seu compêndio em oito volumes História das Ideias Políticas. Todavia, enquanto ele já havia escrito boa parte dos volumes, o professor passou por um agudo bloqueio intelectual que, no fim, auxiliou-lhe a aperceber-se de que uma investigação descritiva e conceitual das ideias políticas tomadas isoladas da própria gama de experiências simbólicas, espirituais, intelectuais e histórico-concretas que evocam-nas ao seio da sociedade política não passava, no fundo, de uma falácia ou um sofisma bem-intencionado.

Isto posto, foi no meio de sua crise que Voegelin parou para reformular as bases de sua pesquisa e escreveu o ensaio A Nova Ciência da Política [The New Science of Politics], em que lançaria as bases para o seu estudo mais aprofundado tanto do cosmion político, isto é, a estrutura simbólica auto-iluminativa das sociedades humanas que reflete tanto a ordem do cosmos quanto a reta ordem da alma na Pólis, quanto do gnosticismo como substância mesma da modernidade, inserido no panorama esquematizado acima. Para os fins deste trabalho, nos concentramos neste segundo aspecto, que encerra os capítulos IV em diante de sua obra sublinhada.

Voegelin principia declarando uma verdade histórica simples e verificável: “O confronto entre vários tipos de verdade no Império Romano terminou com a vitória do Cristianismo” Importante frisar, contudo, a passagem “tipos de verdade”. A filosofia histórica de Eric Voegelin encerra uma teorização que privilegia as concreções noéticas da existência humana acima das disputas meramente econômicas ou políticas, sendo estas, precisamente, expressão da ordenação interna dos indivíduos ou agentes sociais; no juízo de Voegelin, os conflitos mutagênicos no contexto de “queda” (ou transformação) do Império Romano e ascensão do medievo cristão são muito mais um conflito de verdades ou cosmovisões do que quaisquer outros motivos.

De qualquer forma, quando “a cultura do politeísmo morreu de atrofia experiencial” o resultado foi o reordenamento da sociedade sob novos critérios de transcendência. O “mundo repleto de deuses” do politeísmo morreu junto com ele, pois o cristianismo o substituiu pela experiência da graça de Deus que transcende o mundo e, junto com ela, o Reino celeste e futuro, no Milênio. O mundo, o saeculum, portanto, ficou completamente “desdivinizado”; e a sua redivinização moderna, como dissemos, não se figura como um retorno ao paganismo, mas ao retorno de componentes heterodoxos do próprio cristianismo, isto é, as heresias.

Por redivinização, contudo, não se entenderá uma revivescência da cultura politeísta no sentido greco-romano. A caracterização dos movimentos políticos de nossos dias como pagãos, a qual goza de certa popularidade, é enganosa, pois sacrifica a natureza historicamente singular dos movimentos modernos em favor de uma semelhança superficial. A redivinização moderna, ao contrário, tem suas raízes no próprio Cristianismo, a partir de componentes que foram suprimidos como heréticos pela igreja universal. (VOEGELIN, 1982, p.85).

A tensão entre um mundo desdivinizado em prol da valorização do transcendente vindouro e um mundo cujo framework político goza de direito e natureza divinos não surge porém, de acordo com Eric Voegelin, após a estruturação e diferenciação completa do cristianismo, mas surge tão logo a Igreja cristã nasce enquanto movimento messiânico judaico, com a antecipação da Parusia e o advento do milenarismo enquanto doutrina cristã paralela. Vemos, uma vez mais, a originalidade de Voegelin ao traçar como interno ao cristianismo as primícias do que seriam depois diferenciadas como um gnosticismo afastado, nas antípodas da religião cristã.

De qualquer forma, a expectativa de uma Segunda Vinda imediata que experienciou a Igreja cristã como incluída no Apocalipse de São João e nas epístolas de São Paulo erigiu a tensão a respeito de como conciliar a existência da Igreja — instituição divina porém terrana, “em missão” e com o potencial de desdobramento no tempo — com a Parusia imediata e imanente. A doutrina do milenarismo considerou a literalidade do Milênio descrito por São João como o “anúncio revolucionário” de um período de mil anos em que Jesus Cristo reinaria com os seus santos na terra antes do reino celeste e definitivo. Era essa a experiência cristã original imediatamente encontrada na letra de João e Paulo, segundo Voegelin, que manifestava explicitamente a dificuldade da atitude espiritual de desdivinização do mundo e transcendentalização do “mundo que há de vir” nos cristãos primitivos.

Essa tensão não seria solucionada até Santo Agostinho ordenar corretamente a perspectiva cristã do reino (o mundo) e o reino celeste em seu Civitas Dei. O ponto de vista agostiniano, mais cético e menos apaixonado após séculos de Igreja peregrinante sem sinais visíveis da Parusia, jogou a pá de cal final sobre o milenarismo: “a esperança revolucionária numa Segunda Vinda, que transfiguraria a estrutura da história na terra, foi abandonada como ‘ridícula’”. O Verbo se tornara matéria em Cristo e a graça da redenção foi concedida ao homem; não haveria qualquer divinização da sociedade além da presença espiritual de Cristo na sua Igreja, e o reino celeste seria transcendente, não imanente. O milenarismo foi sepultado, lado a lado com o politeísmo, o monoteísmo exclusivo judaico e o monoteísmo metafísico pagão. A Igreja cristã universal (católica) permaneceu como a única organização capaz de fornecer respostas para as indagações espirituais do homem, e a perspectiva agostiniana permaneceu válida até o fim da Idade Média, quando a tensão da dificuldade de manter o mundo afastado das fagulhas divinas mantidas no transcendente pelo fraco vínculo da fé se faria sentir, e as perspectivas gnósticas começariam a pulular no seio da sociedade cristã.

Até lá, Voegelin traça um panorama da “Alta Idade Média”, entendida como um “projeto”. O Império Romano havia ruído e com ele a realização prática de um império político universal e “ecumênico”. Todavia, os diversos reinos “bárbaros” fragmentados não abandonaram o desejo de reformular e fazer ressurgir este império, agora, porém, sob novas insígnias de unidade. A Igreja Católica agora fornecia parte do que o Império Romano fornecera: Roma, a Cidade Eterna, não era mais a cidade do imperador, mas do Papa, atuando como o coração da religião unificadora do território e legitimadora dos novos imperadores.

Do lado dos reinos políticos, a vocação imperial fez subsistir o Sacro Império Romano-Germânico, tido como sucessor legítimo do falecido Império. A existência unificado do Sacro Império não foi longa, entretanto; porém o legado da tentativa e a substância que a definia não dependia da real unificação política de um território, pois Voegelin compreendeu a Idade Média européia do primeiro milênio uma “congregação” de entidades políticas unificadas em torno da idéia de imperium e da mesma religião cristã e católica. Tais eram as marcas visíveis de unidade apesar da fragmentação política.

Apesar disso, uma fissura nesta ideia de imperium seria feita na medida em que a Igreja e o próprio cristianismo avançavam com sucesso em sua missão temporal, isto é, na sua progressiva penetração em todas as camadas sociais e na sua expansão geográfica. Marca visível do preceito evangélico “Ide, pois, e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16:15). A articulação progressiva do cristianismo, como vimos, “desdivinizou” o mundo terreno substituindo tal divindade pelo “fraco vínculo da fé” na graça transcendente. Todavia, eventualmente, as tensões geradas por essa nova atitude espiritual iriam irromper numa nova imanentização, desafiando a concepção oficial agostiniana.

O risco de um colapso de fé em grau socialmente significativo aumenta na medida em que o Cristianismo se converte em êxito temporal, isto é, cresce quanto o Cristianismo penetra inteiramente numa área civilizacional (…) e, ao mesmo tempo, sofre um processo interno de espiritualização, de realização mais plena de sua essência. Quanto mais pessoas são atraídas para a órbita cristã (…), maior será o número daqueles que não possuem a força espiritual exigida para a heróica aventura da alma que é o Cristianismo. (VOEGELIN, 1982, p.94).

À vista de Voegelin, então, se o problema de perda de fé ocorre como um fenômeno de massa, as consequências dependerão do conteúdo do meio civilizacional em que estejam caindo os agnósticos. Como a civilização em que já se inserem é qualitativamente superior em termos de experiência espiritual, a fuga deste meio desembocará eventualmente em recorrer a uma cultura “menos diferenciada” nos mesmos termos, isto é, de experiências espirituais; como o politeísmo pagão já havia sido soterrado como alternativa experiencial válida, restou recorrer a uma versão do cristianismo “menos diferenciada”, e o retorno do milenarismo e da especulação mística judaica cristalizados no chamado “gnosticismo” faz-se iminente.

Assim, no início do segundo milênio, vemos as primeiras especulações espirituais que giram em torno da divinização do mundo imanente. Se tomarmos a discussão ao nível dos princípios, pode-se perceber que o novo eixo existencial do gnosticismo girou em torno da construção do eidos da história, que alega Eric Voegelin ser uma falácia, que conduzirá à imanentização do eschaton cristão. Resumidamente, construir o eidos da história significa apreender o próprio sentido da história; tarefa impossível, já que só se pode inteligir o sentido de um objeto sendo nós mesmos externos a ele e observando-o em sua completude. Nós, contudo, não somos nem externos à história nem ela própria está completa. Manifesta Voegelin que, por definição, o eidos da história só pode dar-se no eschaton, isto é, fim (de onde vem-nos “escatologia”) transcendente. A experiência gnóstica, que à época constituía uma cultura religiosa viva à qual os homens podiam recorrer, acaba por imanentizar o eschaton cristão, isto é, trazia para a contingência do mundo criado as categorias do transcendente, divinizando o mundo às custas da graça divina vindoura, ressuscitando o milenarismo e manifestando um esforço para obter um domínio sobre o nosso conhecimento da transcendência maior do que o propiciado pela cognitio fidei. Estava dada a “pneumopatologia de consciência” do horizonte civilizacional cristão, cujas notas essenciais iriam se replicar acidentalmente ou casuisticamente em todas as experiências gnósticas posteriores, isto é, as da modernidade.

Isto posto, demos nome a alguns bois. Joaquim de Flora, no século XIII, foi o primeiro a articular um rompimento com a concepção agostiniana da sociedade cristã ao aplicar o símbolo da Trindade ao curso da história. Em sua concepção, a história teve três períodos, correspondentes às hipóstases da Trindade cristã: a primeira foi a era do Pai; com o surgimento de Cristo, veio a era do Filho, devendo a ela seguir-se a era do Espírito. Nas palavras de Voegelin, “as três eras foram caracterizadas como incrementos inteligíveis de realização espiritual. Na primeira era desdobrou-se a vida do leigo; a segundo suscitou a vida de contemplação ativa do sacerdote; a terceira traria a vida espiritual perfeita do monge”. Além do mais, cada era devia possuir um líder espiritual e seria passível de ser calculada. A primeira era teve Abraão como líder, a segunda Cristo, e a terceira, que começaria por volta do ano 1260, fazia surgir o Dux e Babylone.

A característica mais importante de tais fatos, segundo o autor, é que “em sua escatologia trinitária, Joaquim criou o conjunto de símbolos que preside, até hoje, a auto-interpretação da sociedade política moderna”. Sendo acidental ou não a incidência da tripartição histórica em boa parte das ideologias da Modernidade, é um fato bastante curioso. O primeiro dos símbolos do conjunto, por óbvio, é a partição histórica em três eras, cujos reflexos modernos temos a própria divisão da história em antiga, medieval e moderna (sendo “contemporânea” e “pós-moderna” apenas nomes que implicitamente denunciam a fatiga da insuficiência desta divisão); a teoria de Turgot e Comte acerca da sequência das fases teológica, metafísica e científica; a dialética hegeliana dos três estágios de liberdade e realização espiritual auto-reflexiva; a dialética marxista dos três estágios do comunismo primitivo, sociedade de classes e comunismo final e, por último, o símbolo nacional-socialista do Terceiro Reino. O segundo símbolo, referente ao profeta da terceira era, teve eficácia imediata nos círculos gnósticos e franciscanos da época, pois viram em São Francisco a concretização da profecia de Joaquim. Voegelin afirma, aqui, que este símbolo pode ser encontrado posteriormente nas figuras paracléticas dos “homines spirituales” do Renascimento e Reforma, transmutado em uma figura múltipla e não mais num homem particular. O último símbolo pertinente a nós é o referente à “irmandade de pessoas autônomas”:

A terceira era de Joaquim, devido à nova descida do espírito, transformará os homens em membros do novo reino sem a mediação sacramental da graça. Nessa era a igreja deixará de existir porque os dons carismáticos necessários à vida perfeita chegarão aos homens sem a mediação dos sacramentos. (…). A ideia prestava-se a variações infinitas. Ela pode ser encontrada, em graus diferentes de pureza, nas seitas medievais e renascentistas, assim como nas igrejas puritanas dos santos; em sua forma secularizada, tornou-se um componente formidável no credo democrático contemporâneo; e constitui o núcleo dinâmico do misticismo marxiano acerca do reino da liberdade e do gradual desaparecimento do estado. (VOEGELIN, 1982, p.88).

Está claro, portanto, que Voegelin sustenta que a escatologia implícita de quase todas as ideologias modernas são herdeiras do gnosticismo de Joaquim de Flora. Seu gnosticismo produziu um conjunto de símbolos fixos e bem definidos, por meio do qual as sociedades posteriores passaram a produzir a sua auto-interpretação. O gnosticismo é a essência da modernidade precisamente porque esta imanentização do eschaton cristão (a esperança revolucionária moderna) está inserida formalmente em seu “cosmion” político, segundo a filosofia política voegeliana. Isto é, a Pólis, que reflete tanto o ordenamento do cosmos como o ordenamento da alma, agora reflete um universo cujos símbolos hodiernamente imanentizados, na alma ou consciência do homem, não possuem mais lastro na cognitio fidei, na experiência da fé.

A especulação gnóstica venceu a certeza da fé recuando da transcendência e dotando o homem e seu raio de ação intramundano com o significado da realização escatológica. Na medida em que essa imanentização avançou experiencialmente, a atividade civilizacional transformou-se num trabalho místico de auto-salvação. (VOEGELIN, 1982, p.98).

O diagnóstico voegeliano, então, para a modernidade, é de uma “pneumopatologia de consciência” — que discorremos um pouco anteriormente. Uma investigação mais profunda sobre a consciência segundo o juízo do autor seria-nos por demais laboriosa; contudo, dado o que já expomos, um resumo será suficiente. Para o professor, a consciência humana insere-se no “metaxo”, isto é, um balanço entre a transcendência, seus símbolos e seu resultado na experiência histórica, e o imanente. A tensão experienciada pelo homem define-se em adquirir o equilíbrio entre as volições de transcendência e imanência, sem confundir o que é próprio de um e de outro. A pneumopatologia de consciência a nível individual (e que subsiste enquanto primícias da patologia social) consiste precisamente nesta confusão. Temos, portanto, ou a imanentização do eschaton e dos símbolos de transcendência ou a “fé metastática”, isto é, a forte e cega fé vinculativa que espera da divindade uma transmutação completa e revolucionária da vida comum. Essa “fé metastática” Voegelin identifica no profeta Isaías e inicialmente em seus trabalhos não diferencia-o de “gnosticismo”. Posteriormente Voegelin fará a distinção já aqui apresentada, sendo gnosticismo o componente imanentizador, que espera a transmutação mundana como resultado de uma ação humana revolucionária, e não do auxílio divino; a “fé metastática” é substancialmente diferente daquilo que se apresenta aqui como “natureza da modernidade”.

Para fins de conclusão, exporemos mais alguns casos particulares de gnosticismo moderno que Voegelin traz como exemplo. O caso do protestantismo puritano inglês se apresenta como o mais emblemático deles.

A relação pessoal de Eric Voegelin com o cristianismo é um tanto abstrusa. Nascido e sepultado em uma comunidade luterana, foi um radical crítico da Reforma e dos reformadores. Entretanto, estava longe de pender para um catolicismo tradicionalista caricato, tendo feitas inúmeras críticas às ações históricas do catolicismo romano como o aumento da monarquia papal perpetrada pela Unam sanctam de Bonifácio VIII e a distinção escolástica radical entre razão natural e revelação sobrenatural como incompreensão da noção socrático-platônico-aristotélica da noesis. De qualquer forma, sua posição original que privilegia o cristianismo medieval “de vocação universal” (católico semanticamente) como propiciador de uma consciência coletiva saudavelmente inserida no metaxo epocal fez com que ele considerasse a Reforma Protestante como um evento de declínio em que, pela primeira vez, as intenções heréticas suprimidas por séculos irromperam à superfície das instituições sociais e políticas.

Através da análise do “equilibrado Hooker” (um clérigo anglicano que vivenciou a ebulição do puritanismo), Voegelin traça as semelhanças entre eles e os movimentos gnósticos tradicionais. Segundo ele, Hooker identificou os passos e ambições políticas por trás do movimento puritano: primeiro, a crítica severa aos males sociais, em especial o comportamento das altas classes; segundo: concentração do ressentimento popular sobre o governo instituído.

Assim, os oradores “provam” sua sabedoria, liderança e pureza por fazer a massa ver esses males, coisa que ela, por si só, jamais veria. Após isso, o terreno está preparado para a ação política remediadora. Hooker compreendeu que a propaganda gnóstica representa uma ambição de ação política, e não uma busca da verdade no sentido teórico. A começar pela parcela de imanentismo do movimento puritano, pois o revolucionário gnóstico interpreta a chegada do Reino como um evento que necessita de sua cooperação armada, com a ajuda dos “santos” e suas igrejas escolhidas, a predileção exacerbada pelos pobres como escolhidos e o ódio pelos ricos. Tudo isso, segundo Voegelin, estaria muito próximo ao componente de imanentismo presente entre os socialistas modernos e representava, naquela época, o retorno de um milenarismo mais ou menos intermediário entre a gnose imanentista estrita e a “fé metastática”, pois o gnosticismo puritano ainda apresentava severa confiança na Providência do Senhor.

Outra característica reveladora do movimento puritano foi fazer os crentes crerem que sobre eles recai a luz do Espírito Santo, criando naturalmente a sensação de que eles são iluminados e seus detratores são culpavelmente ignorantes ou agentes do maligno. Ocorre uma separação entre “nós” e “o mundo”. Os “irmãos” e os “mundanos”. Esse isolamento também enormemente dificulta, quando não impossibilita, a persuasão por vias argumentativas, justamente porque o gnóstico sente-se “eleito” e guiado pelo Espírito, e argumentar com o maligno é evidentemente inútil.

Os paralelos que Eric Voegelin traça entre o movimento puritano e os movimentos socialistas revolucionários modernos são evidentemente radicais. Deve entender-se, contudo, que Voegelin não compreende essa transferência conceitual como ativa ou consciente, mas como a apropriação e transformação dos mesmos símbolos, criados pela imersão numa mesma “pneumopatologia”. Isto é crucial. Assim sendo, preserva-se a continuidade entre os “rios cársicos” da história, isto é, os eventos formalmente semelhantes separados por séculos sem conexão imediata entre eles, sem cair na ingenuidade de que a continuidade é alguma unidade planejada.

Por outro lado, a crítica de Voegelin ao protestantismo puritano não deve entender-se como uma crítica exagerada a um setor também “radical”, pois o parecer de Voegelin recai não apenas à ação concreta e histórica dos movimentos mas também aquilo que pertence ao núcleo descritivo da própria fé protestante e presbiteriana, como as próprias Institutas de João Calvino os Artigos de Fé. Para Voegelin, tais documentos são “alcorões” gnósticos com o fito de obscurecer o consenso teológico discordante anterior, inaugurando um novo começo a partir do qual os questionamentos devem ser respondidos, sem o recurso à tradição da Igreja universal e católica precedente. Uma nova roupagem de desordem do metaxo e imanentização do eschaton tradicional é imposta sob ilusão de restauração da cognitio fidei formando um “imanentismo axiológico”, e é precisamente isto a substância de todos os outros movimentos revolucionários contemporâneos, especialmente o comunismo marxista e a experiência nacional-socialista, vivenciada na pele por Voegelin. Para ele, o totalitarismo é a expressão máxima do gnosticismo.

Conclusão

Eric Voegelin é um gato comumente sendo vendido por lebre. Isto é, ele habitualmente figura como uma das muitas referências de filósofos liberal-conservadores, utilizado ainda para a legitimação do modelo liberal norte-americano de governo frente aos totalitarismo europeus do século passado. Para tal, se costuma utilizar-se de seus epítetos amedrontadores aos fenômenos modernos, como “Gnose”, junto ao fato de que eles são tidos por ele evidentemente como problemáticos. Não só isso, apresenta-se, no conjunto da obra, o próprio método voegeliano como aliado do conservadorismo estrito na análise histórica. Contudo, isto é evidentemente falso.

Vimos que o método histórico de Voegelin aproxima-se em muito do “modernismo” da Escola dos Annales, ao privilegiar o auxílio multidisciplinar à análise histórica, fazendo uso da psicologia e simbologia para seus pareceres e, por fim, ao considerar a história como um evento qualitativamente mais denso e volitivo do que a mera descrição política historicista faz parecer. De fato, ele não abraça o completo abandono da história política empregado pelos annalistes, mas antes diz: “a teoria política, desde que penetre no terreno dos princípios, deve ser, ao mesmo tempo, uma teoria da história”, abordando a política de uma forma completamente inovadora, admitindo a fusão dos terrenos histórico e político na medida em que sua teoria da representação o permite; pois, segundo ele, a existência política é a existência histórica e vice-versa.

Por fim, vimos como se dá a sua valorização do cristianismo, não privilegiado-o como um cristão tradicional normalmente o faria, mas considerando-o como um evento histórico importante pela sua potencialidade de “desvelamento da alma” humana e de capacidade de sintonizar este espírito humano e social com as ambições políticas; em suma, o cristianismo seria um daqueles períodos misteriosas na história humana em que “insights” ou experiências espirituais de alto nível são desencadeados, providenciando épocas de maior articulação e diferenciação social, das quais emergem pneumopatologias sociais que, são, antes de mais nada, doenças sócio-individuais do espírito e desordens experienciais. A razão de ser de tais “insights” e o motivo do surgimento das patologias que a eles se seguem são tidos, para Voegelin, como “o mistério” da estrutura da história. A Modernidade, portanto, é uma patologia de declínio, considerada assim por critérios de análise objetivos, porém sem a pretensão de ser sem juízos de valor como os positivistas, tão duramente criticados por ele, faziam. Eric põe-se numa posição de originalidade em admitir que as desordens do “metaxo” podem surgir da própria natureza histórica das épocas altamente diferenciadas, como o helenismo pós-platônico, Israel pós-êxodo ou, no caso aqui apresentado, a modernidade pós-cristianismo.

Fontes bibliográficas

FRANZ, Michael. Ideology and Pneumopathological Consciousness: Eric Voegelin’s Analysis of the Spiritual Roots of Political Disorder. 1988. Dissertação (Doutorado em Filosofia). Universidade de Chicago: Chicago, 1988.

VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política. 2 Ed. Editora Universidade de Brasília: Brasília: 1982.

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Written by João Guilherme Pianezzola

“Pois nele vivemos, nos movemos e existimos” — Atos 17:28.

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