Descrição detalhada da Liturgia do século IV d.C.

João Guilherme Pianezzola
8 min readOct 11, 2020

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Trecho retirado de: DUCHESNE, L. Christian Worship: its origin and evolution. A study of the Latin liturgy up to the time of Charlemagne. 5a Ed. Londres: Society for Promoting Christian Knowledge. 1919. 60p.
Tradução: João Guilherme Pianezzola de Oliveira

O texto abaixo descreve com grande fidelidade a liturgia celebrada na Síria na metade do século IV d.C, mas também deve ser reconhecido, segundo o autor, que tais costumes litúrgicos descritos pelos documentos abaixo também abarcam, nessa época, as igrejas de Antioquia, Laodiceia, Tiro, Cesareia e Jerusalém. As fontes documentais mais antigas que descrevem a liturgia siríaca são três:

  1. O 23o Catecismo de São Cirilo de Jerusalém, datado de aproximadamente 347 d.C;
  2. As Constituições Apostólicas (Livro II, 57 e Livro VIII, 5–15);
  3. As Homilias de São João Crisóstomo.

O Catecismo de S. Cirilo é verdadeiramente uma descrição da celebração litúrgica, elaborada para os neófitos logo após a sua iniciação. A descrição tece detalhadamente a segunda parte da celebração, ou seja, a Liturgia Eucarística, enquanto deixa sem muitos detalhes a Liturgia dos Catecúmenos. Isso se deve ao fato do costume da Igreja Primitiva de dispensar os catecúmenos da liturgia após o ofício das leituras, pois eles eram considerados indignos até mesmo de assistir o sacrifício eucarístico. Portanto faz sentido que o Catecismo descreva a segunda parte da celebração que era desconhecida aos neófitos e iniciados enquanto ignore a primeira parte, a que eles já estavam acostumados. É deste costume de dispensa, inclusive, que herdamos o nome Missa, de missare ou dismissare, dispensa no latim.

O resto das informações são obtivas através dos livros segundo e oitavo das Constituições Apostólicas ou Didascália.

Enfim, muito pode ser observado através da narração que se seguirá, e convido o leitor a prestar atenção nas diferenças assim como nas semelhanças entre as práticas atuais e as da Igreja dos primeiros séculos com relação à Sagrada Liturgia. Os aspectos mais interessantes que merecem ser ressaltados serão marcados em negrito.

E u agora irei descrever o Serviço Divino assim como esses documentos sugerem que ele tenha sido, fazendo notar, quando necessário, as divergências entre um e outro.

A congregação se reúne, os homens de um lado, as mulheres de outro, e o clero na abside. Os leitores imediatamente começam as leituras, que são interrompidas por cantos aqui e ali. Um leitor sobe ao ambão, colocado no meio da igreja entre o clero e a congregação, e faz duas leituras; então um outro [leitor] toma o lugar daquele e canta um salmo, que é cantado como um solo, mas aqueles presentes assumem as últimas modulações do seu canto. Isso é o que é chamado de responso, Psalmus Responsorius (Salmo Responsorial), e deve ser cuidadosamente distinguido da antífona, que é um salmo comandado alternadamente por dois coros. A antífona até então não existia, e apenas o Responsorial era usado. Devia haver um número considerável de leituras, mas nós não temos informações sobre quantas. A série de leituras chega ao fim com a leitura do Evangelho, que é realizada não por qualquer leitor, mas pelo sacerdote ou diácono. Todo o público se levanta durante essa última leitura.

Diácono à esquerda fazendo uma leitura. Bispo à direita superior e diácono com turíbulo à direita inferior. Iluminura de 1056, mas serve para contextualização.

Com as leituras e salmos finalizados, os sacerdotes começam as homilias, cada um pregando por sua vez, e após eles o bispo. A homilia é sempre precedida de uma saudação direcionada à congregação, que responde pelo versículo “E com o teu Espírito.”

Após a homilia as várias classes de pessoas que não têm o direito de estar presentes nos sagrados mistérios são dispensadas. Os catecúmenos são mandados embora primeiro. Ao convite do diácono eles oferecem uma prece silenciosa, enquanto a congregação também reza por eles. O diácono formula esta oração, especificando as suas particularidades, dando as petições em detalhes. Os fiéis, especialmente as crianças presentes, respondem-no pela súplica Kyrie Eleison! Os catecúmenos depois se levantam e o diácono os convida a orar, juntando-se a ele na forma que ele emprega [a oração]; ele então os convida a inclinar suas cabeças para receber a bênção do bispo, após a qual eles são dispensados.

A mesma forma é observada quanto aos energúmenos, os competentes, isto quer dizer, os catecúmenos que estão se preparando para receber o batismo, e finalmente os penitentes.

Os fiéis comunicantes (os que podem receber a Comunhão), que agora estão sozinhos na igreja, entregam-se à oração. Prostrando-se para o oriente eles ouvem o diácono enquanto o mesmo diz as petições da Litania: “Pela paz e prosperidade do mundo… Pela santa Igreja católica e apostólica… Pelos bispos e padres… Pelos benfeitores da Igreja… Pelos neófitos… Pelos doentes… Por quem está viajando… Pelas crianças… Por quem está extraviado, etc.” A congregação junta-se a essas petições pela súplica Kyrie Eleison! A Litania chega ao fim por uma formulação especial: “Salva-nos, recupere-nos novamente, ó Deus, pela Sua misericórdia.” Então a voz do bispo faz-se ouvida sobre o silêncio, pronunciando de uma maneira grave e digna uma prece solene.

Assim termina a primeira parte da liturgia, aquilo que a Igreja pegou emprestado da antiga prática da sinagoga. A segunda parte, a Liturgia Cristã propriamente dita, começa com a saudação do bispo seguida de uma resposta da congregação. Logo a seguir, durante o sinal dado pelo diácono, o clero recebe o beijo da paz do bispo, enquanto os fiéis o trocam entre si, os homens entre os homens e as mulheres entre as mulheres.

Então os diáconos e os demais ministros inferiores dividem-se em dois grupos, a um sendo estipulada a supervisão da congregação e ao outro o serviço do altar. Aqueles tomam o seus lugares entre os fiéis, arranjando estes de acordo com sua fileira, as crianças jovens sendo colocadas nas proximidades do local santo. Eles também vigiam as portas para que nenhuma pessoa profana entre na igreja. Os outros [diáconos] trazem e posicionam sobre o altar os pães e os cálices preparados para a santa refeição, enquanto dois destes outros se atém a balançar a flabella para proteger de insetos as santas oblações. O bispo lava as suas mãos e veste-se com um paramento festivo; os sacerdotes organizam-se ao redor dele, e juntos todos se aproximam do altar. Este é o momento solene. Após uma oração privada oferecida em silêncio pelo bispo, este traça o sinal da cruz sobre a testa, e começa:

“A celebração da Missa em um oratório — Fac-símile de uma miniatura de um manuscrito do século IX etc”. O celebrante é voltado para o altar e incensa as oblações.

“A graça de Deus todo-poderoso, o amor de nosso Senhor Jesus Cristo e a comunhão do Espírito Santo, estejam convosco.

“E com o teu Espírito.

“Corações ao alto.

“Já o temos ao Senhor.

“Demos graças ao Senhor.

“É justo e digno.

“É verdadeiramente digno glorificar-Te, antes de tudo, Deus verdadeiramente existente…”

E a oração eucarística continua, começando pela majestade do Deus incomparável, passando à recapitulação de todos os Seus benefícios conferidos às Suas criaturas, enumerando todas as maravilhas da natureza e da graça, apelando aos grandes modelos da antiga aliança, e concluindo, finalmente, por um retorno ao santuário misterioso, no qual a Divindade repousa no meio de espíritos, onde os querubins e os serafins juntos cantam o hino eterno do Trisagion. Neste ponto toda a congregação levanta as suas vozes, juntando-se ao coro dos anjos em seu hino: “Santo, Santo, Santo é o Senhor…”

Terminado o hino, há silêncio uma vez mais, e o bispo procede com a oração eucarística que foi interrompida: “Sim, verdadeiramente Tu és santo…” e ele celebra a obra da Redenção, da encarnação do Verbo e Sua vida e paixão terrenas. Neste momento o improviso do celebrante segue de perto a narrativa do Evangelho sobre a Última Ceia e as palavras misteriosas ditas pela primeira vez por Jesus na véspera de Sua morte e repetidas na mesa santa. Logo em seguida o bispo, tomando como seu texto as últimas palavras “Fazei isto em memória de Mim”, expande-as, recordando a memória da paixão do Filho de Deus, da Sua morte, ressurreição, ascensão, e a esperança de Seu retorno glorioso, declarando que está verdadeiramente de acordo com o mandamento de Cristo, e é em comemoração desses eventos que a congregação oferece a Deus esse pão e vinho eucarísticos. Finalmente, ele reza ao Senhor para que considere com benevolência a oblação, e para que desça sobre ela a virtude do Seu Espírito Santo, para que ela seja feita em corpo e sangue do Cristo, o alimento espiritual do Seu povo fiel e garantia de sua imortalidade.

A oração eucarística propriamente dita chega então ao fim. O mistério está consumado. Ao chamado dos Seus discípulos Cristo se tornou presente entre eles. Ele assumiu sua morada no altar santo sob os véus místicos dos elementos consagrados. As orações são retomadas, mas direcionadas agora ao Deus presente, embora invisível. Não é mais o diácono, ou um ministro inferior quem fala e conduz as súplicas, mas o próprio bispo, a cabeça da comunidade cristã:

“Senhor, nós oramos a Ti por Vossa Santa Igreja, espalhada afora de um canto do mundo ao outro… por mim, que não sou coisa alguma… por estes sacerdotes, por estes diáconos, pelo imperador, os magistrados, e pelo exército… pelos santos que em todas as eras foram capazes de agradar a Ti, patriarcas, profetas, os justos, os apóstolos, mártires… por estas pessoas, por esta cidade, pelos doentes, por aqueles que estão sob o jugo da escravidão, pelos exilados, pelos prisioneiros, marinheiros, viajantes… por aqueles que odeiam-nos e perseguem-nos… pelos catecúmenos, os possuídos, os penitentes… pela regularidade das estações, pelos frutos da terra… pelos que estão ausentes.” Ao fim dessa grande oração há uma Doxologia, a qual toda a congregação responde Amém, assim ratificando o ato de ação de graças e intercessão.

O Pater Noster é agora recitado, acompanhado por uma nova porém breve Litania diaconal, em que alguns dos assuntos já enumerados pelo bispo em sua longa súplica são novamente levantados. Após a Litania o bispo novamente dá a sua bênção ao povo.

Esta cerimônia sendo terminada, o diácono desperta a atenção dos fiéis, enquanto o bispo diz, em voz alta, “Coisas santas para pessoas santas!”. O povo responde: “Um só Santo, um só Senhor, um só Jesus Cristo, pela glória de Deus Pai, abençoado para sempre, Amém. Glória a Deus nas alturas, paz na terra, benevolência aos homens. Hosanna ao Filho de Davi! Bendito Aquele que vem em Nome do Senhor! O Senhor é Deus; Ele manifestou-Se a nós. Hosanna nas alturas!”

Sem dúvida alguma que era durante este ponto que ocorria a fração do pão, a cerimônia cujos documentos do quarto século não mencionam em termos largos. A comunhão então acontecia. O bispo comungava primeiro, depois os sacerdotes, diáconos, subdiáconos, leitores, salmistas, ascetas, diaconisas, virgens, viúvas, crianças pequenas e, finalmente, o resto da congregação.

O bispo administrava o pão consagrado colocando-o na mão direita aberta do comunicante, apoiada pela esquerda. O diácono segurava o cálice, do qual cada um bebia diretamente. A cada comunicante o bispo dizia “O Corpo de Cristo”. O diácono administrava o sacramento com as palavras “O Sangue de Cristo, cálice de vida”. Os comunicantes respondiam com um “Amém”. Durante a comunhão o salmista cantava o Salmo 33 (34), Benedicam Dominum in omni tempore, em qual as palavras Gustate et videte quia suavis est Dominus tinham uma significância especial.

Acabada a comunhão, o diácono dava o sinal para a oração, a que o bispo oferece em nome de todos. As pessoas se curvam para receber a bênção, e são finalmente dispensados pelo diácono com as palavras “Vão em paz”.

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“Pois nele vivemos, nos movemos e existimos” — Atos 17:28.

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